Vem Hermann Hesse mantendo no Brasil, desde os anos 40 do século passado, um prestígio que, mesmo não sendo barulhento, é permanente. Livro seu que então pegou os jovens leitores pelo gasnete como obra do mais avançado surrealismo, "O lobo da estepe", teve sucessivas edições brasileiras no ano final da guerra 1939-45.
Era como se uma guerra urbana, contra as máquinas, pudesse restaurar a paz que - ainda não sabíamos- as duas guerras anteriores tornariam impossível de ser restaurada por completo.
Seguindo uma tendência que nos vem de final dos anos 49 - e que parece ainda não ter chegado ao fim - Hermann Hesse ingressou numa fase mística, influenciada pelo Oriente e, através dessa fase, renovou seu alforje de ritos e ritmos. Tendo recebido o Prêmio Nobel de Literatura em 1946 - logo após a guerra, portanto - quatro de seus livros tiveram aqui depois grande êxito: "O jogo das bolas de vidro", "Viagem ao Oriente", "Felicidade", e "Siddharta".
A onda de misticismo, sob várias de suas formas - inclusive o do movimento hippie e o dos conjuntos musicais dos "Beatles" - em diante - o que levou André Malraux a profetizar que "o século XXI ou será místico ou não será nada" - essa onda, dizia, vem até hoje e permeia uma boa parte da literatura atual.
Nessa direção muito influiu toda a obra de Hermann Hesse cujo livro mais popular, depois de "O lobo da estepe" foi "O jogo das bolas de vidro". Baseou-se então ele no sentimento geral de que a vida é lúdica por excelência e o jogo tem dois aspectos fundamentais: o ritmo e o rito, e que ritmo e rito são também as bases do próprio homem.
A poesia, a música, a religião constituem partes importantes no jogo geral da vida, cujo ápice seria o misticismo. As lições de Santo Ignácio de Loyola, no sentido de levar o homem a um estado de graça e de meditação - os ensinamentos do livro chinês "I-ching" chamado "O livro das transmutações" - se parecem no ponto em que realçam o valor do ritmo, do ritual, da música e naturalmente do silêncio.
A poesia, com seus ritos e seus ritmos (que ela os tem a ambos) é o grande caminho na busca de uma iluminação interior, de um entendimento das coisas. Sobre o rito e o ritmo da palavra muito nos falou Ezra Pound, que traduziu para o inglês uma boa quantidade de odes de Confúcio. Em três versos de Confúcio, traduzidos por Pound, aparecem os três ítens que tornam o homem apto a viver, pensar e sentir:
"Despertado pelas Odes;
Firmado pelos Ritos;
Aperfeiçoado pela Música."
Nessa trindade colocava Confúcio o ideal do homem. As odes chinesas eram cantadas com o acompanhamento de um alaúde especial, de modo que, cinco séculos antes de Cristo, a poesia chinesa ligava a síntese de suas palavras à modulação que só a música podia proporcionar. Em seus livros ligados ao Extremo Oriente acentua Hesse o papel da literatura como forma especial de conhecimento.
Em princípio, qualquer escrito é uma forma de conhecimento. Contudo, o poema nos parece em geral como o instrumento ideal para conhecermos a verdade mais densa do tempo e de nós mesmos, e a prosa, a grande prosa, também chega lá com seus livros: um "Dom Quixote", um "Guerra e Paz", um "A la recherche du temps perdu", um "Judas, o obscuro", um "A metamorfose". Assim, Cervantes, Tolstoi, Marcel Proust, Thomas Hardy e Kafka estão na lista dos que fizeram literatura como forma especial de conhecimento.
Em Hermann Hesse - principalmente em seus livros finais - "Viagem ao Oriente, e "Felicidade" - esse propósito de "conhecimento" se acentua numa certeza de que a palavra é o elemento certo do aprendizado. Só a palavra pode revelar a realidade, embora às vezes a palavra também seja a realidade.
Hesse trata, inclusive, da beleza das palavras, no espírito de que as palavras valem também pelo que significam. Aponta a palavra "pão" e entrega-se ao que ela significa, e já todas as nossas forças vitais do corpo e da alma são convocados e entram em atividade. Estômago, céu da boca, nariz, língua, dentes e mãos falam, e na alma despertam centenas de lembranças, recordamos a mesa de jantar da casa paterna...Ou nos assalta intensamente a lembrança do aroma que vinha da casa do padeiro ainda de madrugada...Ou a lembrança da Santa Ceia: "Tomai e comei, este é o meu corpo."
Em seguida, Hesse lembra a Itália, região de Tessino, cuja população usa a palavra "pão" num sentido especial. Quando querem dizer que uma pessoa é boa, mas realmente boa, dizem que é "boa como pão": "Felicidade", de Hermann Hesse, é uma edição Record. Tradução de Lya Luft. Capa de Evelyn Grumach, detalhe de quadro de Giotto. Prefácio, muito bom, de Marco Lucchesi.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 14/03/2006