Cena de "Rei Lear", logo após dividir o reino entre as filhas e chamar o bufão da corte para se distrair ou para saber como iam ou iriam as coisas após a decisão que tomara. Na linguagem própria dos bufões, cifrada, cheia de alusões e de subentendidos, o bufão diz o que mais ou menos está pensando. O rei o encara e comenta: "És um bufão triste!".
(Alguns tradutores preferem o "bufão amargo" - bitter fool -, eu prefiro o "triste", tradução de Louis Aragon para o mesmo trecho, num poema dedicado a Carlitos).
Já foi dito diversas vezes, inclusive por mim mesmo, que o artista é o bufão da corte social, onde se comprime a humanidade com todos os seus ramos e galhos - uma sociedade em todos os sentidos chifruda como um veado ou um corno.
Mais especificamente, a mídia também é uma espécie de bufão, embora não tenha qualquer preocupação em ser ou não uma obra de arte, que realmente não é, nem chega perto e tampouco se preocupa com isso.
Um bufão que lembra os bufões medievais, próxima do poder, convocada até mesmo em momentos especiais para que o rei e a corte saibam como estão indo as coisas, o que estão ou estarão pensando sobre o que acontece ou ameaça acontecer.
Com informações variadas da cocheira, dos estábulos, da cozinha, mas, sobretudo, com as informações nascidas dentro dele mesmo, o bufão comenta o que está havendo ou o que haverá. Sabe que não o levarão a sério, afinal é um bufão, está ali para isso mesmo, ser um bufão. Pode dizer o que quiser, sabendo que de nada adiantará a sua opinião.
Mas também sabe que nenhum rei pode viver muito tempo sem o seu bufão, não para distraí-lo, mas, por obrigação de rei, uma corte pode até não ter rei, mas precisa ter um bufão. Com sua linguagem nem sempre muito cifrada, o bufão diz o que pode, sabendo que nada mudará no rei e no reino.
No fundo, quem tem razão é mesmo o rei: "És um bufão triste!".
Folha de São Paulo (São Paulo) 16/1/2006