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O Brasil, sua gente e o Oriente Médio

 

O Itamaraty realizou em 10 de julho mesa-redonda sobre a construção da paz no Oriente Médio, a partir do ângulo dos insumos criativos que a esse processo possam dar expoentes das comunidades de origem árabe e judaica de países do Mercosul.
 
O chanceler Antonio Patriota teve a gentileza de me convidar para participar do debate, mas a ele não pude comparecer por estar no mesmo dia em Washington com o presidente Fernando Henrique Cardoso, que ali recebeu o prestigioso Prêmio Kluge. Mas gostaria de aqui registrar algumas reflexões sobre o tema, que são basicamente as que tive a oportunidade de transmitir ao chanceler.

A "ideia a realizar" do preâmbulo da nossa Constituição é a dos "valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica de controvérsias". É em obediência a essa diretriz que, nos termos do artigo 3.0, IV, da Constituição, um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é o de "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Esse dispositivo constitucional está em consonância com válidas aspirações nacionais e corresponde, com as naturais discrepâncias entre o ser da realidade e o dever ser dos valores, a uma característica básica da experiência histórica do nosso país. Essa característica propiciou uma unidade numa plural e ajustada convivência das diversidades e levou a uma sociedade que é um amálgama criativo da heterogeneidade das procedências constitutivas do povo brasileiro. Este se corporificou como uma nova liga, de que falou José Bonifácio, o estadista da nossa Independência. Foi no contexto do amálgama dessa nova liga que os brasileiros de origem árabe e judaica encontraram espaço propício para desenvolver-se, enraizar-se, criativamente interagir uns com os outros e com todos os segmentos da população brasileira e integrar-se em todas as dimensões da vida nacional.

A experiência brasileira contrasta favoravelmente com a de outros países. Trata-se, assim, de um válido ativo de softpower num mundo fragmentado e permeado por xenofobias, preconceitos e dificuldades em relação ao diferente dos Outros. Não custa lembrar que as culturas perecem no isolamento e se vivificam na interação recíproca. Daí as virtudes e as virtualidades do nosso amálgama.

Penso, assim, que a cultura política que vem contribuindo para a construção da arquitetura, ainda que imperfeita, do Brasil como país é um ingrediente que oferece um locus standi para levar adiante uma ação diplomática em consonância com os princípios da defesa da paz e da solução pacífica de conflitos, preconizados pelo artigo 4.0 da Constituição, que dá a moldura jurídica que rege as relações internacionais do Brasil.
 
Ninguém ignora as tensões difusas de hegemonia e de equilíbrio que assinalam o contexto regional do Oriente Médio e sua História. Essas tensões impactam o sistema internacional, permeiam e dificultam o processo de paz entre israelenses e palestinos, para o qual os Acordos de Oslo traçaram um válido caminho. Pondero, assim, que a experiência brasileira é fruto tanto de outra realidade histórica quanto dos dados da inserção do Brasil na América do Sul, muito distinta, na sua dinâmica política, da que caracteriza o Oriente Médio. É uma experiência que, por causa de sua especificidade, não pode ser mecanicamente transposta para outros contextos, mas é um exemplo que dá título de legitimidade ao exercício, pelo Brasil, de um esforço em prol da paz.
 
Concluo, por isso, que um dos objetivos do evento do Itamaraty é o de, valendo-se da experiência brasileira, reforçar o alcance da cultura de paz no Oriente Médio. Isso significa, no plano interno, preservar o Brasil de eventual intromissão dos ódios dos conflitos do Oriente Médio em território nacional, sempre um risco com a globalização, que internaliza o mundo na vida dos países. Penso, lastreado no princípio da prevalência dos direitos humanos contemplados no artigo 4.0 da Constituição, que, como diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo XXVI, 2), que tomo no sentido amplo de uma paideia, em sintonia com a experiência brasileira, promover, em consonância com o sentimento constitucional do Brasil, "a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as raças e grupos raciais ou religiosos", coadjuvando, assim, "as atividades das Nações Unidas em prol da paz". Isso se traduz, no plano externo, no exercício, pelo Brasil, do potencial do difícil papel de um terceiro em prol da paz, um tertiusjuxta partes, que tem como requisito obedecer à sempre atual lição do Barão do Rio Branco: "O dever do estadista, o de todos os homens de verdadeiro senso político, é combater as propagandas de ódio e as rivalidades internacionais".
 
Estas reflexões estão lastreadas nas observações de um estudioso das relações internacionais e na experiência da chefia, em duas oportunidades, do Itamaraty e que, ademais, tem consciência de suas raízes judaicas e do valor primordial da paz - o bem dos bens - na tradição judaica. O Pirkê Avot - A Ética dos Pais -, que recapitula os ensinamentos dessa tradição, preceitua: "Hilel diz: Sêdos discípulos de Aarão, ama a paz e busca a paz" (1.12). Esse preceito aponta para a necessidade de se empreender um dedicado e contínuo esforço em prol da paz -sempre esquiva conquista da razão política -, posto que, como também ensina A Ética dos Pais, "o mundo se sustenta em três coisas: a verdade, a justiça e a paz" (1.18) - ensinamento que igualmente compartilho na condição de professor de Filosofia do Direito.

 
O Estado de São Paulo, 15/7/2012