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O Brasil entre o poder do horror e o horror do poder

 

Quando disse que o presidente só podia ser um rato, o boteco quase veio abaixo de tanto riso e palmas, de tanto protesto e vaias

Há tempos que eu não via Joca, meu velho amigo privilegiado, morador de casarão em trecho exuberante da floresta. Se não fosse apenas pelo prazer de vê-lo e ouvi-lo, não podia recusar seu convite para “tomar uma cerveja e saber como andam as coisas no Brasil”. Fui intrigado.

Joca conduziu o carro para os limites de uma comunidade e parou diante de um botequim, mais bem tratado que a média dos outros na região. Entramos, com ele à frente, e logo ouvi uma voz grossa e cheia de catarro preso gritar, por trás do balcão do boteco: “Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! É ele, minha gente, é o cara!” E puxou o aplauso pela chegada de meu amigo.

Meu amigo agradeceu os aplausos, assobios e gritos excitados de parte considerável dos fregueses, e me apresentou ao senhor bigodudo e gordo da voz de catarro. “Vamos contar aqui pro meu amigo como anda o Brasil, seu Taco!”, disse ele. Imaginei que Taco fosse uma redução popular para, por exemplo, Eustáquio. E arrisquei: “Boa noite, seu Eustáquio.” “É Otávio. Otávio Costa”, me respondeu jogando fora pela boca o que lhe travava a garganta.

O boteco estava lotado de gente, mesmo para uma noite de sábado. Joca pediu sua cerveja geladíssima, me contentei com uma Coca Zero pequena. Um rapaz, do outro lado do bar, perguntou em voz alta a Joca: “Ouviu o discurso do cara, cara?” Por um desses milagres cariocas de entendimento nas nuvens, compreendi que o rapaz se referia ao presidente e seu discurso em Nova York, na ONU. “Uma merda”, respondeu Joca de bate-pronto, “nem pra eleitor burro serviu”. Quase todo mundo no boteco riu. Um outro rapaz, na mesa ao lado da de Joca, afirmou, sem muita convicção, que “burro vota é no Lula, não vota nele”.

O boteco pegou fogo. Em outra mesa, um trio parecia ensaiado: “Quem come na rua e entra pelos fundos...”, “... transmite doença e todos têm vergonha dele...”, “...só pode ser um rato...”, e os três juntaram suas vozes para encerrar o discurso: “...poderosa ratazana!” Antes que o terceiro homem entrasse no coro, todo mundo já caía na risada. Quando disse que o presidente só podia ser um rato, o boteco quase veio abaixo de tanto riso e palmas, de tanto protesto e vaias.

Ali estava o Brasil que Joca queria me mostrar, dividido ao meio, entre o poder do horror e o horror do poder.

A partir daí, não se podia ouvir mais nada do que se dizia no boteco. Ninguém tocava em ninguém, era só gritaria, acho que só pelo prazer de gritar. Joca ria vitorioso, como se fosse o feiticeiro sábio responsável pela balbúrdia. E eu acompanhava a discussão política derivar, com naturalidade, para acusações pessoais, protestos originados por acontecimentos do dia a dia. Frases agressivas que acusavam a uns e outros, ponteadas por palavrões inéditos que pareciam inventados na hora de tão gostosos de dizer, a boca cheia.

Claro que ninguém ali pensava em nosso presidente, eram apenas discípulos de seu jeito de ser. Ou, melhor dizendo, haviam encontrado em seu comportamento a chave para se comportar igual. Também não era uma imitação barata, todos ali tinham aquele mesmo jeito, desde sempre. Só não sabiam que podiam ser assim, nosso presidente os libertava do temor de serem inconvenientes, sem projeto e sem ideologia. Apenas violentos e capazes de assumir seus modos e ideias assim, daquele jeito barato, sem preço. Não ficariam devendo nada a ninguém e depois se esqueceriam do presidente, não saberiam nem quem foi. Os bolsonaristas iam durar muito mais que Bolsonaro, iam durar para sempre.

Há tempos não tinha tanto medo. Disfarcei, conversei mais um pouco, acho que aos gritos para poder vencer a barulheira. E pedi para ir embora, não me lembro sob que pretexto. Joca me atendeu rindo muito.

O Globo, 26/09/2021