O multilateralismo começou a tomar forma no século 20. Este se caracterizou pela unidade do campo diplomático-estratégico resultante dos processos técnicos, econômicos e intelectuais que unificaram, para o bem e para o mal, a humanidade, tornando o mundo finito. Foi o que passou a exigir mecanismos de cooperação entre os Estados.
Foram momentos inaugurais da diplomacia multilateral a Segunda Conferência de Paz de Haia, de 1907, e a Conferência de Paris, de 1919, que ao fim da 1.ª Guerra Mundial levou à criação da Sociedade das Nações. De ambas o Brasil participou, nelas identificando caminhos para a ação diplomática nacional, tendo em vista também as experiências do regionalismo multilateral interamericano.
Assim, nosso país mesclou, com consistência e os ajustes necessários provenientes das mudanças de circunstâncias, bilateralismo e multilateralismo na sua política externa. Essa mescla, favorecida pelo bom trânsito do Brasil no mundo, integrou a perspectiva organizadora da nossa inserção internacional na lida com a agenda de temas de interesse nacional, e no trato das simetrias e assimetrias do poder prevalecentes na ordem mundial.
É a importância dessa tradição que quero destacar aqui, fazendo um contraponto à diplomacia da Presidência Bolsonaro. Esta a ela se opõe. Parte do princípio de que a História começa do zero. Por isso se assume como uma discutível ruptura com o que veio antes, movida por seletivas e autorreferidas preferências axiológicas, desconhecedoras tanto da complexidade do mundo contemporâneo quanto das “forças profundas”, históricas e geográficas que têm caracterizado o modo de ser da diplomacia brasileira.
O multilateralismo se diferencia do bilateralismo e do unilateralismo. Nas relações bilaterais cada Estado negocia, à luz da lógica da reciprocidade específica dos seus interesses, com cada um dos seus parceiros, um a um. É um ingrediente indispensável da política externa de um Estado, à luz dos seus objetivos particulares, que favorecem em maior ou menor grau a tradução de necessidades internas em possibilidades externas. Por maior que seja a rede de relações bilaterais de um país, elas nunca dão conta dos desafios de sua inserção num mundo finito e de interdependências. É, evidentemente, o caso de um país complexo, de escala continental, situado na América do Sul e com múltiplos interesses como o Brasil.
No unilateralismo, um Estado conduz a sua política externa afastando-se das instâncias de concertação e desconsiderando o ponto de vista de outros Estados. A ação unilateral põe em questão, no sistema internacional, a função estabilizadora das normas do Direito Internacional, criadas no seu âmbito, que informa sobre os ingredientes da previsibilidade da conduta estatal e o padrão de legitimidade do aceitável.
O unilateralismo como prática esbarra na resistência que outros Estados são capazes de oferecer à sua ação. Depende, em distintos conjunturas e temas, dos recursos de poder de um Estado. Não é uma opção desejável nem viável para um país como o Brasil, que não possui “excedentes de poder”, como dizia o chanceler Saraiva Guerreiro. Mas é sempre uma tentação de grandes potências. É o caso, no momento atual, que não é unipolar, dos EUA na Presidência Trump pelo bullying unilateral das sanções econômicas, da elevação das tarifas e das ameaças militares. Daí os cuidados que cabe ter com o imprevisível do America first.
O multilateralismo não é a expressão ideológica de um “globalismo”. É a procura de soluções para a convivência internacional. Objetiva a elaboração e a aplicação de normas e pautas de conduta, elaboradas coletivamente pelos Estados para reger suas recíprocas relações num mundo interdependente. Cria, no âmbito institucional de múltiplas organizações internacionais, que operam, como um terceiro entre as partes, tabuleiros diplomáticos. Estes são um espaço para o potencial de articulação interestatal necessária para lidar com os desafios da sociedade internacional contemporânea, que alcança a todos na era digital.
O que sustenta a manutenção no tempo desses tabuleiros, como os da ONU e da OMC, é uma reciprocidade difusa, voltada para trabalhar, em distintos contextos e matérias, o possível da cooperação internacional, em muitas questões do interesse dos países e de suas sociedades.
É no âmbito de tabuleiros multilaterais que se torna viável dar sequência aos princípios constitucionais que regem as relações internacionais do Brasil (artigo 4.º da Constituição). Entre eles destaco a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, a prevalência dos direitos humanos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo, a cercania com as nações latino-americanas; e também a efetivação do direito a um meio ambiente equilibrado e sustentável, contemplado no artigo 225 da Carta Magna.
Uma das características da vida internacional é a distribuição individual, mas desigual, do poder entre os Estados. É por conta dessas desigualdades que as grandes potências tendem a atribuir-se um papel de gestão de ordem mundial.
No multilateralismo, a situação do poder “de fora” pesa, mas não se transfere automaticamente para o seu âmbito interno. É o que dá espaço para um país como o Brasil articular os seus válidos interesses gerais na gestão e dinâmica, que o afeta, do funcionamento do sistema internacional. É o que enseja a presença da voz do Brasil no mundo.
Para a efetividade dessa voz, que se lastreia no bom trânsito do Brasil, é preciso que seja consistente, universalizadora e tenha alcance geral. Não é o que está ao alcance da imprevisível intransitividade solipsista da crítica ao “globalismo” e de seletivas preferências ideológicas. Dizia o padre Antonio Vieira, “perdem-se as repúblicas porque os seus olhos veem o que não é, não veem o que é”.