Na condução da sua política externa, o Brasil sempre atribuiu importância à diplomacia multilateral. Um dos objetivos do multilateralismo é conter, por meio de suas regras, práticas unilaterais na vida internacional. Também integra o escopo da diplomacia multilateral ir além do dualismo das relações bilaterais, nas quais o confronto das posições pode extremar-se e a presença de terceiros logra, frequentemente, contribuir para a conciliação de interesses divergentes.
As organizações internacionais são, por excelência, o âmbito em que opera a diplomacia multilateral favorecedora de cooperação interestatal. É da característica de uma organização internacional a diferenciação entre seus membros e a própria organização, que tem personalidade jurídica e uma identidade que não se confunde com a de seus membros. O órgão institucionalmente assinalador desta diferenciação é o Secretariado, que, no conjunto de seus integrantes, exerce uma função pública internacional e tem, por isso mesmo, caráter internacional. Daí a importância dos critérios do mérito, da qualificação profissional apropriada e da condição pessoal de imparcialidade no relacionamento com os Estados-membros no recrutamento e escolha dos que integram um Secretariado.
A importância destes critérios adquire especial relevância na designação da chefia de um Secretariado, pois um secretário-geral ou diretor-geral não exerce apenas responsabilidades administrativas. Desempenha funções diplomáticas, inclusive de representação simbólica de sua instituição, cumpre um papel mediador entre os Estados-membros e tem a capacidade de impulsionar atividades e negociações. Foi disso que tratei neste espaço ao discutir a atuação de Kofi Annan ou os desafios que se colocavam para Ban Ki-moon quando assumiu a função de secretário-geral da ONU.
O Brasil contribui para o multilateralismo pelo acervo de sua atuação e prática diplomática nos órgãos intergovernamentais das inúmeras organizações internacionais de que participa. A título pessoal e no exercício de funções públicas internacionais, brasileiros vêm contribuindo para o multilateralismo pela qualidade de sua participação em Secretariados de organizações internacionais. Neste sentido, vale a pena lembrar a relevância exemplar da atuação de Rubens Ricupero como secretário-geral da Unctad, que analisei neste espaço por ocasião da conferência desse órgão da ONU dedicado ao desenvolvimento que se realizou em São Paulo, em 2004. É de justiça realçar o excepcional papel desempenhado no Secretariado da ONU por Sérgio Vieira de Mello, que era o alto comissário para Direitos Humanos quando foi vítima de um atentado terrorista no Iraque em 2003.
É na perspectiva da válida contribuição que brasileiros de alta qualificação podem dar ao multilateralismo que vou discutir a posição do Itamaraty na escolha do próximo diretor-geral da Unesco, tendo em vista a existência de excelentes candidatos brasileiros a esse posto.
A Unesco é uma agência especializada da ONU, com personalidade jurídica própria. Em consonância com a ONU, tem como propósito contribuir para a paz estreitando, mediante a educação, a ciência e a cultura, a colaboração entre as nações. Parte do pressuposto de que as guerras nascem na mente dos homens e que é na mente dos seres humanos que devem erigir-se os baluartes da paz. A Unesco é, no plano institucional, uma expressão do que Bobbio qualifica de pacifismo de fins voltado para expandir entre os Estados e as sociedades o entendimento pelo conhecimento e pela compreensão do Outro. Tem-se dedicado a lidar com temas complexos da agenda internacional, como o multiculturalismo e a bioética.
O brasileiro Márcio Barbosa é o atual diretor adjunto da Unesco. Granjeou, no exercício da sua função, o respeito dos Estados-membros. É um digno representante da comunidade científica brasileira, que previamente atuou no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o qual dirigiu. Conta com a simpatia de significativo número de membros e é, por isso mesmo, pelos serviços prestados ao multilateralismo, um candidato com forte potencial eleitoral. Também mostrou interesse pela posição o senador Cristovam Buarque, respeitável homem público brasileiro, destacado educador, com atividades relevantes na área do meio ambiente e desenvolvimento sustentável. A eleição de um brasileiro, neste momento, ajusta-se também à presença, nesse alto posto, de um nome da América Latina e do Caribe, tendo em vista o critério de representatividade por rotação geográfica.
Surpreendentemente, à luz do quadro acima delineado, o Brasil acaba de negar apoio a uma candidatura brasileira à direção-geral da Unesco. A preferência do Itamaraty recaiu no obscuro e discutível nome do egípcio Hosni Farouk, que tem sido objeto de críticas no seu próprio país e enfrenta resistências no mundo árabe. É um personagem que, como ministro da Cultura, disse em conferência no Parlamento de seu país que queimaria livros hebraicos encontrados em bibliotecas egípcias. Nada mais distante dos propósitos da Unesco, que busca a paz por meio do entendimento pelo conhecimento. Trata-se de uma candidatura que não contribuirá, como Márcio Barbosa ou Cristovam Buarque podem fazer, para a "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade", para lembrar princípio constitucional das relações internacionais do nosso país (artigo 4º, IV, da Constituição).
O apoio do Itamaraty a Hosni Farouk é um desserviço ao multilateralismo. Mina a credibilidade do soft power internacional do Brasil. É um erro diplomático, pois compromete a consistência das posições brasileiras em prol do multilateralismo. Constitui um desrespeito à comunidade científica e acadêmica do Brasil, que se vê confrontada com a inaceitável denegação oficial de uma candidatura brasileira à Direção-Geral da Unesco.
O Estado de S. Paulo, 17/5/2009