Até que era asseado, tomava banho todos os dias, mas tinha o sangue que ele considerava "doce", daí que era perseguido desde a remota infância por pulgas - das quais se julgava alvo preferencial e inimigo irreconciliável.
Pegou pulga até mesmo durante uma viagem ao Canadá - país civilizado que ele julgava isento de pulgas. Lembrei a ele que a pulga canadense talvez fosse importada, ele a levara na bagagem, junto com um complicado equipamento para pescar acho que trutas, num riacho perto de Quebec.
Certa vez ele armou uma colossal hipótese para explicar sua birra contra as pulgas, ou mais exatamente, das pulgas contra ele:
Imagine o Maracanã cheio, 200 mil pessoas como no final da Copa de 50. Além das 200 mil pessoas, os 22 jogadores, os reservas, o juiz, os dois bandeirinhas, os fiscais da Fifa, os policiais, os gandulas, os fotógrafos, os penetras vários. Ao todo, umas 210 mil pessoas. Vai começar a partida. O juiz coloca a bola no meio do campo e prepara-se para o apito inicial. Nisso, uma pulga - uma única e escassa pulga - está em cima da bola e sente que será chutada. Resolve sair de cima da bola. Tem à disposição 210 mil pessoas, nem todas banhadas naquele dia, nem todas de roupas trocadas. Pois bem, 15, 20 minutos de bola rolando no campo, a pulga vem diretamente para mim. Num ângulo de 360 graus, com toda uma multidão a seu dispor, ela vem por ínvios caminhos até onde estou, atraída pelo meu sangue doce.
Apreciei devidamente a hipótese levantada por ele. Mas se houvesse 210 mil pulgas em cima da bola, todas elas iriam sugar seu doce sangue? Ou se dividiriam democraticamente pelo estádio, cabendo uma pulga a cada torcedor?
Ele não previra a hipótese dentro da hipótese. Foi com horror que se imaginou atacado por 210 mil pulgas ao mesmo tempo.
Nunca mais freqüentou estádios, vê jogos pela TV.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em 15/06/2002