Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > O beijo dos Mindlin

O beijo dos Mindlin

 

Naquela tarde, José Mindlin fora consagrado por uma votação unânime para a cadeira ocupada anteriormente por Josué Montello na Academia Brasileira de Letras. Tradicionalmente, como sempre acontece após as eleições, ele estava convidando os seus confrades para comemorar a vitória e a perenidade acadêmicas.


 


Na festa com que familiares, acadêmicos e amigos brindavam a sua eleição, oferecida lá no casarão onde viveram Jujuca e Austregésilo de Athayde, um filme de amor desfilou à minha frente. Os protagonistas eram Guita e Mindlin, aos beijos. Ele, do cimo dos deus 93 anos e ela com mais de 90, um casal nonagenário e raro.


 


Á retaguarda, entre os muito convidados, a memória dos Athaydes, também titulares de uma longa vida de casados, de bem casados. Cenário perfeito pelo presente e pelo passado que conviviam naquela noite no Cosme Velho.


 


Chamei o fotógrafo que trabalha para nossa Academia e o instruí a ser um paparazzo: “Fique de olho, no próximo beijo, bata a chapa”. Dito e feito. No dia seguinte, passou-me a foto perfeita.


Um exemplo a essa gente que casa e descasa com quem entra e sai de um barzinho, sem responsabilidade e sem consistência no amor. Não que seja adepto da indissolubilidade a qualquer preço, isso nunca, mas não aceito a dissolubilidade como solução para a relação volúvel de tantas parelhas.


 


Como programado em todos os anos, estive agora em junho nos festejos de São João, em Pernambuco que, se não são tão famosos como o carnaval, são mais bonitos e mais saborosos, levando a foto comigo para mostrar a Maria do Carmo e Taciana Cecília.


Sabia de como a visão em retrato da união construída em solidez, compreensão, renúncia e fidelidade seria de muito grado da minha mulher e da minha filha. Admiramos juntos aquele documento de vida.


 


Tinha a certeza de que na Academia e nas suas atividades, a despeito dos espichados anos de cada um, a imortalidade da casa passaria a se beneficiar da perenidade do amor de Guita e Mindlin.


 


O homem põe e Deus dispõe. Cinco dias depois da noite dos beijos daquele casal feliz e orgulhoso dos feitos do varão, entre outras coisas como dono de uma das mais bonitas bibliotecas do país, tudo se desmancha enquanto realidade dos vivos. Guita, que tanto se animara no restabelecimento de pequena enfermidade e acompanhara o marido na consagração eleitoral daquela tarde, morre e vai embora.


 


Parece até que para morrer esperava apenas que, primeiro, com ela presente, o marido se elegesse para a Academia Brasileira de Letras. Ele, agora, terá que, com a família, ainda mais se consolar na companhia de seus livros maravilhosos. E Guita será a folha de rosto de todos eles, recatada e explicativa.


 


Ele deverá também ter forças para continuar a relação orgânica com a inigualável biblioteca que ambos construíram. Penso nele como homem cuja pele como se alonga para ser capa das obras que presenteou ao Brasil.


 


Deverá ter forças ainda para compreender, ao contrário de algum apressado que venha a associar a emoção do ingresso da ABL à partida de Guita, que nó estaremos todos lá para que se socorra do convívio dos acadêmicos e recordar que, retirando, em gesto elevado, sua candidatura para melhor consagração de Mindlin, Mauro Salles também estará conosco no testemunho da solidariedade.


 


A José Mindlin, por saber e saber cruelmente, a dimensão dolorosa da perda, advertirei com frase dita a mim pelo romancista moçambicano Mia Couto:


 - O morto amado nunca pára de morrer.


 


Jornal do Brasil (RJ) 5/7/2006