A festa da reeleição de Bush não se avalia só em comparação com os gastos das posses anteriores. Afinal de contas, foram apenas US$ 44 milhões contra os 35 de Bill Clinton na sua primeira vitória. O novo vem tanto do novo recado no frio do 20 de janeiro quanto do luxo e da opulência da festa no coração de um país em guerra. Um baile somou-se a outro na farandola do rodopio do casal, terminando na coreografia texana dos donos da festa.
No discurso nenhuma menção às guerras do Iraque ou do Afeganistão. Nenhuma referência ao sacrifício do país, ou de fim ao conflito internacional. É como se Bush já chegasse a uma visão intemporal de seu poder sufragado, afinal, no inédito dos 59 milhões de votos. E numa retórica da absoluta e legítima e democratíssima arrogância que lhe deram as urnas.
O que o espetáculo pode se permitir o exibicionismo de todas as lantejoulas. As entrevistas e as colunas mediáticas deram o espaço mais nobre, não aos próceres ou estadistas, mas a Oscar de La Renta, o modista responsável pelo vestido de Laura Bush. E foi o esvoaçar e os rebrilhos da consorte que dominaram os shots de câmara, no ar de corte e realeza que permite a República, entrada em hegemonia. Ou em dinastia, tanto as predições óbvias levaram a entrevista com sobrinho do atual titular da Casa Branca. Interrogado sobre o futuro respondeu não ter ainda juízo feito sobre se concorrerá, daqui a décadas, ao lugar do tio. Claro que, neste clima de último páramo, o discurso assentou-se na invocação da liberdade trazida por 44 vezes ao bordão, solenizado pelo absoluto e final vácuo semântico.
Perigo é denunciado
Claro, pois, que o perfil do presidente em toda a cerimônia confrontava as efígies esculpidas nas pedreiras gigantes do Monte Rushmore - onde se talharam as faces dos portentos políticos do país - seus founding fathers. Mas a nação, no que é o espetáculo da sua democracia fundamental, foi logo à explosão do dissenso. Repetiram-se as páginas inteiras do "New York Times" ou do "Washington Post", no enxame de milhares de assinaturas denunciando o perigo da nova presidência, e a ameaça justamente das liberdades que se fizeram o moto continuo e canoro do discurso de posse.
O cerimonial da hegemonia não deixava, entretanto, de assestar a adaga nova, na exceção à cantilena, da ameaça, nascida de uma última manipulação da liberdade. A democracia há que ser imposta sem quartel, e tremam todos os povos que não a arvorem, frente ao bulldozer do Salão Oval. Simultaneamente à hegemonia, aí está o seu corolário, impondo a todas as nações o regime das liberdades, pelo talhe de Washington. No que valha, pois, o seu simulacro, segundo a Casa Branca, mais que a vontade efetiva e induzida dos seus povos.
Regimes em silêncio
A contradição vinha de imediato. Absolveria, propondo em silêncio regimes como o da Arábia Saudita ou do Paquistão para, ao mesmo tempo, afinar a mira sobre o Irã, a Coréia do Norte, Cuba ou agora o Sudão e, até, o Zimbabue na lista avançada por Condoleezza Rice no interrogatório do Senado. Só comprovaria a insubsistência da defesa do democratismo americano, a desmoralização antecipada da próxima ida formal às urnas do Iraque em 30 de janeiro. Os grupos moderados, reunidos na poderosa fraternidade dos Ulemas, decidiram sabotar as eleições, acompanhando os focos mais significativos da resistência, tanto xiita quanto, agora, sunita. Sairá do pleito o artefato pedido por Washington em todos os seus trinques e no contraponto final - e para durar - do carimbo da Casa Branca, por sobre a legitimidade efetiva da vontade política do país.
Torna-se ainda mais contundente este desfecho da democracia como aparência que já deixou Karzai, seus turbantes e ademanes, como presidente eleito do Afeganistão que não manda para além das cercanias de Kabul. Na virada de página do 20 de janeiro sepultam-se de vez, sem remorso, já que inclusive se reconhece o equivoco monumental, as alegações, ainda defensivas à época, dos Estados Unidos em invadir o Iraque à busca das armas nucleares. Passaram à mesma lenda imemorial da procura do abominável "homem das neves" no Himalaia. A era Bush que agora se proclama, entretanto, só faz reforçar o espírito de cruzada, despertado pela luta, em todos os quadrantes contra o terrorismo.
A tarefa leva a reconhecer a Casa Branca um conflito sem prazo nem quartel, tanto prolifera como gigantesco cogumelo atômico invisível, a infestação letal da Al-Qaeda. Mas os estandartes de Bush vão mais longe e se trocam pelo missionarismo, doa a quem doer, que levará às tropas americanas, onde aprouver ao Executivo, ao bom combate segundo a verdade bushiana. Ou seja, das liberdades sem os liberais, esses "esquerdistas" perigosos a que se referiu o Presidente. Ou da paz cada vez mais à margem das Nações Unidas. Ou do universo da segurança assentado pela "civilização do medo".
Nos modelos de Oscar De La Renta, ou do discurso da arrogância, em todas as suas galas, entramos no baile sem fim da hegemonia.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 28/01/2005