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O aprendiz de Quasímodo

 

Foi no início de maio. Eu não me habituara a conviver com aqueles monstros que até então se limitavam às paredes do meu quarto. Eles agora me acompanhavam pelas ruas. Numa terça-feira, fui ao cinema no Boulevard des Capucines, saí no meio do filme que era uma droga -eu não me interessava por mais nada.

Resolvi andar da Opera até o Quartier. Era longe. O dia estava bonito, nem frio nem calor, eu não tinha nada que fazer, procurava retardar a chegada ao hotel. Peguei uma rua deserta e ouvi passos atrás de mim. Olhei. Não vi ninguém. Andei mais um pouco. Os passos me acompanhavam.

Voltei-me. No chão, lá estavam monstros, rastejando. Pareciam caranguejos, cobras absurdas, cheias de garras. Eram escuros, feitos de nada, mas obstinados, meus.

Comecei a suar, acendi um cigarro. Nas primeiras tragadas, eles pararam de me acompanhar. Corri. Sem força, caí numa praça que não reconheci. Ninguém me socorreu.

Quando melhorei, reiniciei a caminhada. Os monstros continuavam. Sempre atrás de mim. Entrei num bar iluminado, para tomar água, a boca estava seca, embora entupida de espuma e baba. Meu aspecto assustou as poucas pessoas que bebiam café ou brincavam num fliper. Afastaram-se de mim. Eu devia repugnar-lhes.

Alguns daqueles rapazes, talvez, fumassem os seus cigarros. Mas eu exagerara, perdera o controle. E ali ficaria, preferindo enojar os outros, desde que os monstros permanecessem lá fora, na calçada, me esperando.

Não sei por qual motivo um sujeito me deu um soco, um outro me empurrou para fora. Caí na calçada, no meio dos meus monstros. Embaralhei-me com eles. Foi terrível e macabro. Eu me senti um cadáver rolando no meio dos vermes que me comiam.

Gritei. Um guarda apareceu. O carro da polícia. O xadrez. Acho que me espancaram. Me deram uma injeção, adormeci. Fui solto dois dias depois. Estava imundo. Minhas roupas fediam a urina. Eu perdera minhas defesas. Era um bicho.

Foi com vergonha que cheguei ao hotel. O gerente me olhou severamente, e eu me rejubilei porque ainda era capaz de sentir vergonha. Fecharam minha conta, colocaram minhas malas na portaria. Eu não tinha teto. Ninguém tinha nada a ver com o meu vício, havia muitos viciados no mundo, eu passara da conta, comprometia a todos, viciados ou não.

Tentei me hospedar em outros hotéis. Não me aceitaram. Já era manjado no Quartier. Num deles pedi, como esmola, que guardassem as malas, eu me arranjaria depois. Fui para perto do cais, podia sentar num dos degraus que descem até o rio. Ali não chamaria a atenção de ninguém, nem mesmo a minha.

Pensei no menino limpinho que a mãe beijava, que levou um dia para o banheiro e lhe deu um pêssego aveludado, cheio de sumo, que ela guardara para ele, não queria que o irmão soubesse que aquele pêssego era só para ele, os monstros estavam longe mas esperavam, escondidos na caverna que, tal como o pêssego, era só para ele. O ele que era eu.

""Voilá"..." Vinda de trás, a voz me devolve ao cais do Sena. Não era a voz de um dos monstros que me seguiam, mas de um cara comum, que conseguia dizer alguma coisa sem dizer nada. Me ofereceu outro cigarro. Não sei porque tive vontade de gritar, mas aceitei o baseado. A fumaça empurrou o grito que já estava na garganta. Grito que voltou para dentro, embrulhado nas minhas entranhas.

Naquele instante, um dos sinos da Notre Dame bateu, o som era um pássaro de bronze que tomou conta do espaço. Virei o rosto. "Mamãe, arranjei um bom emprego...", o corcunda mal informado escrevendo para a mãe na província, descolara um bom emprego, sineiro na imensa catedral gótica. Mandava notícias para casa, ficassem tranquilos, mesmo deformado, ele era alguém, não sabia o que esperava, a cigana com sua cabra, a cena final, o povo enfurecido, querendo linchá-lo.

Eu não tinha o povo atrás de mim. Tinha meus monstros. Não adiantava me refugiar na agulha mais alta da catedral. Não precisava amar uma cigana, protegê-la da cólera de todos. Nem mesmo me proteger, a perdição estava dentro de mim, misturada com o gosto de um pêssego impossível e infinito.

Folha de São Paulo, 25/3/2011