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O apagar das estrelas

 

Com Pavarotti encerra-se um ciclo na ópera; o público agora exige montagens sofisticadas e cenários


UMA VOZ luminosa servida por excelente técnica vocal e esforçado jogo de cena fizeram de Luciano Pavarotti mais do que um notável cantor lírico, mas uma celebridade mundial.


Notável também o seu empenho em levar ao grande público os trechos mais quentes do repertório operístico (exemplo: "Che gelida manina" e "Oh dolci baci o languide carezze") e as canções populares que já eram standards internacionais (exemplo: "O sole mio", "Granada"). Além de sua abertura para artistas de diversos países, todos já consagrados, e que puderam dividir o palco com ele.


Com Pavarotti encerra-se um ciclo no mundo da ópera. Um público especializado manteve o vigor do gênero desde Mozart e Monteverdi, atento apenas ao desempenho de vozes privilegiadas e técnicas refinadas. Aos poucos, com o desenvolvimento do gênero teatral (e uma ópera é basicamente teatro), este mesmo público foi exigindo montagens sofisticadas, cenários, figurinos, iluminação, marcação cênica apurada, que ficassem em pé de igualdade com o teatro de comédia ou drama, baseado no texto e na trama.


Com o surgimento do cinema e dos produtos para a televisão, a exigência visual tornou-se predominante. O público não mais podia aceitar um oficial norte-americano, como Pinkerton (de "Madama Butterfly"), com o físico de um lutador de sumô. Nem um toureiro como Camilo, de "Carmen", mais volumoso do que qualquer touro da Catalunha.


Isso sem falar no naipe feminino, uma Mimi tuberculosa terminal ("La Bohème") interpretada por um soprano oceânico, uma traviata dando adeus à vida em seu leito de morte com uma saúde escancarada que nenhuma maquiagem poderia disfarçar.


Os vídeos que hoje são feitos diretamente para a televisão, com montagens assinadas por diretores do cinema e do teatro clássico, não mais comportam os cantores e cantoras agredindo personagens que interpretam. Certo que os ouvidos perdoam o paradoxo. Em disco eles e elas continuam tolerados pelo efeito admirável de uma voz privilegiada, mas teatro é para ser visto, exige encenação apropriada.


Pavarotti teve a sorte de pertencer a uma época de transição, quando a exigência de um físico adequado aos personagens ainda não era radical. Sua belíssima voz, os recursos técnicos que dominava, faziam esquecer o tórax imenso, que se tornava maior com a farda espanhola de Dom José e com o uniforme branco da marinha dos Estados Unidos.


Inteligente, traquejado por anos de profissão, Pavarotti aos poucos encaminhou-se para os recitais, quando aparecia em traje de rigor, com um lenço para enxugar o suor do rosto.


Teve sucesso instantâneo, juntou-se a Plácido Domingo e José Carreras, tornaram-se pop, venderam milhares de discos. Mas nem Domingo nem Carreras tinham a perfeição de seu timbre sonoro, sua capacidade de ir ao si agudo ou ao dó de peito, daí que era sempre o mais aplaudido.


Quando se realizou a Copa do Mundo nos Estados Unidos, lá estavam os três, com Pavarotti em destaque, cantando a vinheta que abria todos os jogos: a ária que muitos consideram a mais bela do repertório lírico, com seu "tramontate, stelle", o apagar das estrelas de "Nessun dorma", que passou a ser o seu próprio prefixo musical: "Ma il mio mistero è chiuso in me, il nome mio nessun saprà". Em muitos sentidos, Pavarotti foi o melhor intérprete de Puccini, seu primeiro papel na cena lírica foi o Rodolfo de "La Bohème".


O curioso é que a ária "pucciana", graças à sua beleza melódica e à interpretação de Pavarotti, foi se tornando obrigatória em filmes e documentários sempre que há multidões, como no futebol.


Mal comparando, lembra o nexo perfeito do "Que bonito é", na versão de Waldir Calmon, que servia de vinheta para os flashes de futebol do "Canal 100" do Carlinhos Niemeyer.


Voltando à Copa do Mundo realizada nos Estados Unidos. Os norte-americanos são mestres em espetáculos musicais, os melhores do mundo. Dispõem de gênios como Leonard Bernstein, Aaron Copland, Cole Porter, Irving Berlin e outros. Mas para expressar a coreografia do futebol, a energia dos jogadores e torcedores, o espetáculo em si na beleza dos gestos e das emoções, foram buscar o italiano Puccini e o italiano Pavarotti.


Folha de S. Paulo (SP) 14/9/2007