Reconheço: nas vésperas de mais um Natal em que se comemora o nascimento do fundador do cristianismo, é de mau gosto falar em Nero, considerado pela maioria dos historiadores cristãos o Anticristo previsto no Apocalipse. A desculpa que ouso apresentar é meio furada. Pretendo aproveitar o gancho (Nero) para, mais uma vez, expressar a falta de credibilidade da história, qualquer história, desde a universal, até a história miúda que estamos vivendo.
Vamos lá. Formou-se o consenso de que Nero foi a Besta apocalíptica, que só teve igual nos fastos humanos na figura de outra Besta chamada Adolf Hitler. Analisemos com calma: os crimes e a malignidade do führer são recentes, milhares de suas vítimas ainda estão vivas e, embora os mais recentes historiadores daquele período do século 20 comecem a esboçar um perfil mais isento do líder nazista, ainda assim, o saldo é o do horror pela deformação a que pode chegar um ser humano, a ponto de nem merecer a classificação de humano.
Mas o meu assunto é Nero, nascido Lucio Domicio Enobarbo, imperador e dono do mundo aos 17 anos, incestuoso, incendiário, matricida, uxoricida, fratricida, louco, sanguinário, cruel, tarado sexual, debochado. Que mais? Aparentemente, só não cometeu o crime de receber dinheiro do Marcos Valério, mesmo assim nunca se sabe, o mal, além de universal, para rimar é também intemporal.
Meu assunto não chega a ser Nero em si, mas o que fizeram dele os historiadores, que, num conceito mais amplo, formariam a mídia que ainda não existia. Evidente que os estudiosos cristãos, dentro daquela regra de que os vencedores escrevem a história, deitaram e rolaram em cima do primeiro imperador que oficializou, em nome do Estado, a perseguição aos membros daquela seita que, três séculos mais tarde, substituiria o Império Romano.
Tinham esses historiadores o apoio de fontes seguras, de autores contemporâneos do apogeu de Roma, como Suetônio e Tácito. O primeiro era um cronista social, preocupado com fofocas da corte e da alta sociedade do Império, absorvendo e espalhando tudo de ruim que ouvia, mas preservando o sigilo das ditas fontes, com um escrúpulo que faria inveja a seus sucessores atualmente na mídia universal.
O segundo pertencia a uma classe parasitária, explorava um latifúndio que lhe dava enorme poder e nunca perdoou a Nero a redução de seus privilégios e influência no corpo senatorial. Foi um modelo de reacionário, nostálgico da república que lhe dera favores e impunidade.
Nem Suetônio nem Tácito compreenderam "a tentativa de Nero de transformar, estrutural e culturalmente, a sociedade romana para adaptá-la à dimensão de um império que dominava o mundo" (Massimo Fini, "Duemila Anni di Calunnie", Arnoldo Mondadori Editore, 1993).
A transformação pretendida custaria sangue, suor e lágrimas, com o acréscimo de alguns cristãos embebidos em petróleo e queimados nos postes que iluminavam a Casa Áurea. Crueldade e tirania à parte, foi um homem de Estado; nos 14 anos de seu reinado, o Império conheceu um período de paz (era um pacifista radical), de prosperidade e de dinamismo cultural e econômico. Nietzsche acentuou que Nero "pensava grande" e procurou "modelar o mundo segundo sua intuição e imaginação".
Santo Agostinho, como sempre genial, negou a Nero o caráter de anticristo, admitindo que ele seria apenas a fonte da qual nasceriam os afluentes que desaguariam na grande Besta.
Adotando-se critérios modernos, Nero seria um ancestral categorizado dos sucessivos monstros da história, chegando a Hitler e até mesmo a George W. Bush, o anticristão de plantão. Diferia deles porque não gostava de guerra, usou da violência comum naquela época para combater os inimigos internos que procuravam minar o colosso. Procurou exterminar sobretudo os cristãos, que pregavam uma doutrina "exótica", no mesmo grau em que os militares brasileiros de 1964 consideravam o comunismo uma idéia exótica.
Seus antecessores e sucessores mandavam construir arcos e promoviam triunfos quando voltavam das campanhas militares que anexavam novos povos ao Império. Nero promoveu um único triunfo, quando voltou dos Jogos Olímpicos de 68, em Corinto, onde se sagrou Campeão de Poesia -havia disso naquela época de obscurantismo. Além dos saltos, corridas, lutas livres e arremesso de discos, havia competição de poesia.
Deve ter sido catimbada essa remota Olimpíada do ano 68 da Era Cristã, tendo entre os vencedores o dono do mundo que se submeteu à regra do jogo sabendo que ninguém era besta de derrotá-lo.
Duas imagens de Nero ficaram no imaginário da humanidade. Segundo alguns, ele teria mandado incendiar Roma, fato não comprovado, mas admitido consensualmente. E, inspirado pelo espetáculo, pegou a sua cítara e cantou seus versos, que deviam ser maus, embora sinceros.
A outra imagem foi a de seu fim, ao pedir que o escravo o degolasse. "Que grande artista o mundo vai perder!" Sem entrar no mérito e no conteúdo da frase, foi uma das melhores pronunciadas por um homem diante do nada.
Folha de São Paulo (São Paulo) 23/12/2005