Se alguém tivesse dito a Nelson Rodrigues no leito de morte, em 1980, que ele teria um busto de bronze em seu mausoléu no Cemitério São João Batista, Nelson acharia apenas justo. Mas, se também lhe dissessem que, em janeiro de 2024, esse busto de 45 kg seria arrancado do mausoléu a pé de cabra e levado por ladrões, Nelson vibraria. Veria ali a consagração final, a prova de que sua obra pertencia a todos, até aos ladrões de túmulos —logo ele, que teve uma relação tão amorosa com a morte e escreveu tantas cenas de cemitério em seus romances, contos e peças.
Nelson não podia imaginar que o furto do busto não teria a ver com sua grandeza. O furto de peças de bronze é uma triste realidade em nossos cemitérios e, pouco antes de seu busto, tinham levado do mesmo São João Batista a estátua de Claudio de Souza, conhecido canastrão literário dos anos 30 e autor de obra solidamente sepultada. Daí ser também justa a iniciativa dos netos de Nelson, os atores Sacha Rodrigues e Crica Rodrigues, de instalar no mesmo lugar um novo busto.
Foi uma cerimônia bonita, no dia 3 último. Edgar Duvivier, escultor, autor do busto e também músico, tocou ao saxofone o hino do Fluminense, clube de Nelson, e a lancinante "Mil Perdões", de Chico Buarque, inspirada nele ("Te perdoo/ Por contares minhas horas/ Nas minhas demoras por aí/ Te perdoo./ Te perdoo porque choras/ Quando eu choro de rir./ Te perdoo/ Por te trair.")
Nelson disse isso ao repórter André Kalàsz, numa entrevista para a revista Manchete em 1966, e ninguém lhe deu bola. Décadas depois, um biógrafo a descobriu, transcreveu-a em seu livro e usou "O Anjo Pornográfico" como título. A cerimônia, involuntariamente, realizou outra frase de Nelson: "Eu queria ser um santo". Agora é.