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O animal teimoso

 

A recente tragédia na Ásia causou um impacto mundial e, ao mesmo tempo, uma surpresa. O trauma foi terrível e atingiu a todos nós, que mais uma vez ficamos conscientes da fragilidade do nosso mundo e de nossas vidas.


A surpresa veio nos dias seguintes. Nem os milhares de mortos haviam sido enterrados, e os turistas, muitos dos quais morreram literalmente na praia, já estão de volta, tampando o nariz com máscaras.


Bem verdade que o tsunami não teve intensidade igual nas regiões atingidas pela violência do maremoto. Mesmo assim, causa espanto que, em muitas praias que sofreram a fúria do oceano, os turistas já estejam de volta, refestelados em suas cadeiras de lona, bebendo drinques coloridos pelo canudinho, como se nada houvesse acontecido.


É assim mesmo. O habitante principal deste planeta, tão problemático, é osso duro de roer, insiste e insiste contra a razão, o bom senso, a adversidade, seja ela qual for, e a civilização nasceu e continua em processo justamente por causa dessa insistência. Não fôssemos chatos, pagando sempre para ver, e ainda estaríamos morando em cavernas e arrastando as nossas mulheres pelos cabelos.


Quando houve o terremoto de Lisboa, Voltaire clamou contra Deus e acreditou que ninguém mais habitaria a foz do Tejo. O mesmo aconteceu, séculos antes, quando o Vesúvio destruiu Pompéia, e Plínio, não sei se o Plínio Velho ou Novo, acreditou que ninguém mais habitaria as encostas daquele vomitador de fogo. Que vomitou fogo outras vezes e vomitará mais cedo ou mais tarde. Nem por isso os napolitanos deixam de cantar até hoje que o Sol é deles.


Los Angeles, uma das cidades mais feéricas do mundo, tem encontro marcado com uma fenda igual a que causou a tragédia da semana passada. Donde se conclui: o homem vive e sobrevive não por ser um animal racional, mas por ser um animal teimoso.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 04/01/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 04/01/2005