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Nunca fomos uma nação

 

Caetano e Chico são visões distintas dessa nossa formação de mamelucos e mulatos irritados, gente que não é capaz de nos reconhecer a nós mesmos

O severo Gilberto Braga morreu no mesmo dia em que comemorávamos o aniversário de Milton Nascimento, essa flor da canção e da esperança. Assim como nos deixava, na mesma semana, o doce e preciso Nelson Freire, “o segredo mais bem guardado do piano”, como diziam dele os críticos franceses. Gilberto e Nelson se foram quando recebíamos encantados o novo disco de Caetano Veloso, “Meu coco”; e o livro novo, agora de contos, de Chico Buarque, “Anos de chumbo”.

Essas mortes e essas estreias nos são oferecidas como elementos de reflexão sobre a cultura brasileira e sua já estendida invenção. Mal ou bem, sabemos o que pode nos dar a juventude da Austrália ou do que são capazes os criadores do velho Japão. Mas o Brasil ainda é um mistério, hipótese de uma descoberta ainda difícil de ser finalmente desvendada.

Caetano e Chico são visões distintas dessa nossa formação de mamelucos e mulatos irritados, gente que não é capaz de nos reconhecer a nós mesmos, sem saber quem somos. No final do século XVI, os mamelucos, filhos de brancos com indígenas, tomaram conta do Sul e do Sudeste brasileiros e nunca foram tão agressivos com seu próprio povo, destruindo e escravizando populações inteiras, cercadas em seus conjuntos de moradias. Esses bandeirantes são hoje heróis nacionais, sobretudo nas áreas de onde saíram para ocupar o que seria o Brasil. E os mulatos, os filhos de brancos com negros, não lhes ficaram atrás, adquirindo escravos e os bens de senhores, participando da aniquilação de quilombos e de gente fugida deles.

Só podemos sorrir de esperança ao ouvir canções que dizem coisas como uma aculturação de artistas brasileiras (Nara, Bethânia e Elis) ou ler o conto em que o herói se encontra com Pablo Neruda e Ava Gardner num hotel da Avenida Atlântica. Não me interessa o que eles pretendem. Me interessa admirar a coragem de inventar um rumo novo para contos e canções, a partir de seus personagens e outros dados específicos. A coragem de trabalhar de novo numa construção original do Brasil.

Nós nunca fomos uma nação, como são as nações que conhecemos no planeta. Nunca fizemos os caminhos vulgares que elas fazem para serem reconhecidas. Nunca tivemos, numa guerra, um morto enrolado na bandeira. É outra a nossa natureza e ainda não a descobrimos.

Apesar de todos os males que vivemos hoje, do mal natural do coronavírus ao mal político do regime que estamos sendo obrigados a suportar, é nosso dever observar o que se passa em torno, o país que deve estar nascendo apesar de tudo. Talvez tenhamos que reconhecer cidadãs e cidadãos, antes mesmo de elaborar nossa cidadania. Eles é que vão construir o Brasil com que sonhamos, mesmo que não seja o país que desejamos. E, quando Bolsonaro e sua turma forem embora, vamos ter que arrumar a casa que eles esculhambaram com a festa vagabunda. A gente precisa aprender que democracia é um lance muito cansativo, mas vale a pena depois que fica pronto.

Como disse o historiador francês Nicolas Lebourg, a direita é uma visão de mundo e não um programa de governo. Como tal, ela deixará seus sinais por aí, pelas esquinas do Brasil. O que vamos fazer com todas as besteiras, absurdos e gestos destrutivos que fazem? O Brasil tem que recomeçar. Tem que ter a humildade de recomeçar, ter paciência para recomeçar tudo de um lugar em que estava, além de inventar o inédito. Vai dar trabalho, não vai ser mole. Mas esse é o destino político das gerações que estão vivas e atuantes neste momento.

O Globo, 07/11/2021