O século 20 foi caracterizado por Hobsbawn como um século breve e uma era de extremos. Esta periodização histórica, 1914-1991, mereceu um reparo importante de Jonathan Schell, que, em livro publicado em 2001, argumenta que o século 20 não terminou.
A partir das reflexões de Hannah Arendt sobre o ineditismo das rupturas trazidas pelo século 20, Schell realça que o século 20 se prolonga neste nosso século 21 em razão de um evento inaugural: a bomba atômica lançada em 1945 pelos EUA sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão. A bomba implantou, nas concepções estratégicas, as armas nucleares. Estas assinalam a possibilidade do uso da violência numa escala inimaginável, ensejam a viabilidade do extermínio de coletividades e operam no horizonte do terror da descartabilidade do ser humano, por meio de um holocausto nuclear.
Conhecimento é poder, afirmou Francis Bacon. No século 20 o nexo do problema da relação conhecimento/poder, trazido com o advento da bomba atômica, deriva do desafio de como absorver a colossal força da energia liberada pela matéria no incerto domínio das ações humanas. Esse poder, no caso, é tanto o dos criativos usos pacíficos do nuclear (por exemplo, na medicina) quanto o de abrir a hipótese de autodestruição da própria humanidade pelo potencial inerente ao seu emprego militar. É por este motivo que o problema das armas nucleares é parte dos assuntos não resolvidos do século 20.
Schell, em livro de 2007, discute as novas configurações do perigo nuclear. Aponta que os dois problemas de natureza global que hoje ameaçam o futuro da humanidade são a catástrofe ecológica e a catástrofe nuclear. A reação a estes dois problemas globais é, no entanto, diferente. O emblemático aquecimento global é atualmente perceptível por todos. Daí a vigência, em escala planetária, de uma consciência ecológica. Por isso o risco de catástrofe ecológica está, para evocar Ortega y Gasset, ao alcance da razão vital, que permite tanto orientar a nossa vida no mundo quanto orientar-nos no entendimento do mundo por meio do conceito do desenvolvimento sustentável. Já o perigo das armas nucleares é real, mas não é perceptível na experiência cotidiana das pessoas. Está no campo da razão abstrata.
Na sua origem, a obtenção das armas nucleares e a reflexão estratégica subseqüente associaram a segurança ao medo. Da posse para impedir o seu uso por outros, derivou o “equilíbrio do terror”, lastreado na dissuasão recíproca entre os EUA e a União Soviética, que assegurou em escala global uma paz precária no período da guerra fria. Hoje, com o término da bipolaridade, não existe mais um “equilíbrio do terror”, mas a busca, pelos EUA, de uma primazia nuclear como expressão do poderio norte-americano. Esta primazia permite exterminar, mas, para lembrar Raymond Aron, não ajuda num mundo heterogêneo nem a reinar sobre os “infiéis” nem a convertê-los. Daí, além do dilema moral albergado nas armas nucleares, a sua limitação político-diplomática.
Além das preocupações com a segurança, outra motivação que leva à busca das armas nucleares é a de obter ou manter o prestígio do status de grande potência. Este foi o raciocínio que levou, no período da guerra fria, à nuclearização militar da Grã-Bretanha, da França e da China.
No pós-1991, os casos de proliferação nuclear para fins militares como os da Índia, do Paquistão e da Coréia do Norte também foram motivados pela busca de segurança e prestígio, mas tiveram o efeito de questionar a lógica do Tratado de Não-Proliferação Nuclear de 1968, o TNP, concebido para procurar impedir o crescimento de potências nucleares, além das primeiras cinco. Da mesma maneira, a nuclearização militar potencial do Irã ou a não explícita e mais antiga nuclearização militar de Israel (que tem, entre as suas motivações, o medo de um novo Holocausto) são elementos que vêm contribuindo para uma renovação da nuclearização militar. Esta tende a aprofundar-se e a espraiar-se. Assim, nesta primeira década do século 21, não tem havido nem a cessação da corrida às armas nucleares nem o desarmamento nuclear contemplado no artigo VI do TNP.
O ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 aos EUA promoveu, na encruzilhada potencial entre radicalismo e tecnologia, o receio de que terroristas pudessem obter acesso às armas nucleares. Isso explica, no cenário contemporâneo, no âmbito do Conselho de Segurança da ONU, uma renovada ênfase na não-proliferação nuclear e também nos mecanismos das salvaguardas de controle da Agência Internacional de Energia Atômica. Uma das dificuldades do tema reside no fato de as descobertas científicas não poderem ser varridas da consciência humana. Por esta razão, o mundo pode deixar de estar nuclearmente armado, mas não deixará de ser nuclearmente capaz.
O ciclo da energia nuclear é conhecido e dominado por um sem-número de países e os passos da passagem do ciclo do enriquecimento de urânio de fins pacíficos para a produção de uma bomba são relativamente simples. Daí o uso dual - tanto pacífico quanto militar -, no plano das opções políticas, do nuclear e a sua unidade científica e tecnológica. Esta unidade explica por que o desarmamento nuclear e a não-proliferação não podem ser separados. São as duas faces de uma mesma moeda, como tem afirmado com autoridade diplomática o Brasil que, no plano constitucional e dos compromissos internacionais, soberanamente, com boas razões, afastou a opção nuclear militar.
Por isso - e não desconhecendo os perigos da proliferação e os riscos da variedade de um terrorismo de base nuclear - é uma quimera imaginar que a não-proliferação poderá ser imposta pela força ou obtida diplomaticamente num mundo permeado por tensões difusas, por potências militarmente nucleares determinadas a manter-se indefinidamente nesta condição.
O Estado de S. Paulo (SP) 17/2/2008