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Novidades de fim de ano

 

Acabou o ano, ficaram poucas novidades para este restinho diante de nós, a principal das quais será a perspectiva da subida ao poder de um novo presidente e uma Câmara de Deputados e um Senado parcialmente renovados. Claro, ainda haverá os fogos de fim de ano, certamente um atentado ou dois e os Estados Unidos talvez não agüentando mais, de tanto se coçar para invadir o Iraque, partam para a guerra, acompanhados dos ingleses. Ouvi em um noticiário que os gastos americanos com armas subiram para a estratosfera, a começar pelo estoque de bombas inteligentes, daquelas em que ouvimos falar desde a primeira guerra do Golfo, que iam cair numa refinaria e, por leve equívoco, explodiam num hospital a cem quilômetros de distância da refinaria. A morte e destruição que virão já causam grande e sagrada alegria em certos círculos.


Como, bombas inteligentes ou não, ocupar território só se pode com infantaria, teremos também que, na ocasião em que ela se fizer necessária e começarem a morrer rapazes americanos, o presidente Bush não vai mais encontrar tanto apoio em seu povo quanto o recentemente demonstrado, nas eleições para o Congresso. Guerra, tudo bem, mas só enquanto estiverem morrendo os outros. A gente morrer é chato e o presidente americano talvez dê à geração atual um presente só dado a outra por Harry Truman: a explosão de uma ou duas bombinhas atômicas em centros urbanos, à vera mesmo. E, quanto à ocupação, Washington entope de dinheiro os inimigos de Saddam (como já entupiu, de certa forma, o próprio Saddam, no tempo em que ele era um anjo aliado contra os iranianos) e estes tomam o poder prometendo eleições livres para daqui a dois anos, prorrogáveis indefinidamente. Bastarão algumas tropas americanas e inglesas para dar cobertura ao Iraque Livre, mais bombardeios quando solicitados e comida para o povo, fartamente documentada pela CNN.


Conosco, as coisas estão também complicadinhas. Para desgosto de muitos, Lula foi à Argentina e se comportou acima de qualquer crítica. Acertou a jantar sem parecer que estava no bandejão da dra. Rosinha, não meteu o dedo no nariz e não fez nenhum daqueles discursos em maranhol que um de seus antecessores fazia, para grande vexame dos espectadores. Tampouco falou espanhol legítimo, não só porque não fala mesmo nem tem por obrigação falar, como não é papel de presidente nenhum, dos Estados Unidos à Libéria, sair servilmente se desdobrando na língua dos outros. Contou-me um contemporâneo e compatriota dele que o imperador etíope Haile Selassie, que falava várias línguas e, embora de estirpe muito nobre, era imperador de um país paupérrimo, exigia intérpretes, ao encontrar-se com líderes estrangeiros. Ele entendia tudo o que o gringo falava, mas esperava que o intérprete fizesse a tradução, assim como esperava quando chegava a vez dele. Lula é presidente de um país importante e tampouco nos envergonhou. Falou português e, quando cabível, um bom portunhol, marca de aproximação entre nós e nossos vizinhos daqui da América do Sul, também falado pelos governantes argentinos.


Resta, este ano, o trabalho, já iniciado entusiasticamente, de botar a culpa no governo de Lula de tudo o que de ruim acontecer de janeiro em diante. Agora, parece que o caso principal é o da inflação. Os entendidos dizem que ela já saiu da hibernação, está muito disposta e vai pelo menos a 30 por cento em 2003. Claro que a culpa não pode ser de um governo que nem era governo ainda, mas a lógica interessa pouco, nesses casos. O que a gente vai ouvir das viúvas do poder é “nós deixamos o país com menos de 10 por cento ao ano de inflação e, agora em junho, ela já está em 30”. Claro, ela já está engatilhada para pelo menos 30 hoje mesmo, mas a culpa, como tudo mais, vai ser do governo de Lula. Desconfio até que acontecimentos mais longínquos, como a disputa do penta, teria sido culpa de Lula, se não houvéssemos pegado de novo (mal, mas pegamos) o caneco.


Será que, finalmente, um dos países mais ricos do mundo, senão o mais, vai começar a sair do atraso em que meteu a maior parte de seu povo, secularmente? Será que vamos ter condição de explicar a um estrangeiro que mistério nos faz afogar pintos, enquanto milhões de nós nunca comeram uma coxinha de galinha? Será que continuaremos a conviver com o medo, o desgoverno, a insegurança, a desconfiança, a fraude e todas as outras mazelas a que já até nos acostumamos? Diz-se: A derrota é órfã, mas a vitória tem muitos pais. Pois é. Como, em quatro anos, ou mesmo em oito, não dá para reverter quatro séculos, podemos conseguir algumas vitórias, mas, ao que tudo indica, estaremos longe de vitórias como as que queremos. E, no caso das vitórias, deveremos tudo ao atual governo, do qual já há um número imenso de saudosos e futuros saudosos, para a hora em que se tiver de quebrar os ovos para fazer a omelete. No caso das derrotas, a culpa será do governo Lula, que não ia dar certo mesmo.


Sim, vamos viver tempos interessantes. E, pior para Lula, ele foi eleito num clima quase de festa, num clima de palpável esperança exacerbada; foi eleito, como é do nosso vezo agir, como Salvador da Pátria. Cada vez mais é difícil ser Salvador da Pátria e ele, como ninguém, tampouco o será, embora possa ser um grande presidente. O problema é que, a esta altura da História, com a globalização, a assunção do controle da vida privada dos cidadãos e a internacionalização de tudo, inclusive da miséria, talvez o futuro venha a ser como prevêem os mais pessimistas roteiristas e diretores de Hollywood. Felizmente, chega o carnaval. Alguém aí já sabe algum samba-enredo?




O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em 08/12/2002

O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em, 08/12/2002