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Nossa cabeça francesa

 

Os mais recentes encontros do ano França-Brasil concentraram-se na troca da experiência das nossas cabeças: tanto a da universidade, como a literária. É o que proporcionou, de início, a presença na Academia Francesa, de dezesseis membros da ABL, respondendo a um intercâmbio começado pela vinda ao Rio de Janeiro, no Centenário da Casa de Machado de Assis, dos Secretários Perpétuos, Maurice Druon e Hél×ne Carr×re d"Encausse, bem como de Marc Fumaroli e Hector Bianchotti. "Sous la coupole" agora os donos da casa foram saudados por Ivan Junqueira e José Sarney. Relembraram-se as vinhetas dos primórdios da nossa colonização, pelos sucessivos empenhos, finalmente abortados, da França Antártica, na Baía de Guanabara, e da Equinoxial, quando Lavardi×re imprimiu à capital do Maranhão o nome de São Luís, o Rei nos altares.


Vindo aos arcanos, nossa peregrinação ao Quai Conti começou pela visita a Claude Lévi-Strauss, na abrasão de sua inteligência, aos 96 anos. Não reviveu só o seu encontro com as tribos em Mato Grosso, que o levou a vislumbrar o estruturalismo. Reiterou a sedução por São Paulo, onde teve a influência decisiva na criação da nossa primeira universidade moderna. As reminiscências de hoje relembrariam, ao lado do maior dos etnólogos da latinidade, o que devemos a Braudel, a Caillois e, também aos pioneiros menos conhecidos desta lança na Paulicéia, como Georges Dumas e Jean Maugué.


Nesta sideração continuada pela nossa supermegalópole, Lévi-Strauss foi a ponto de guarnecer-se, preventivamente, contra o fascínio inaugural da Baía de Guanabara. Vê o jogo do mar e das nossas montanhas como "mal ambientado" à paisagem, e chama o dintorno carioca de "boca desdentada" pela quebra da harmonia da montanha, nos perfis abruptos e descontínuos, do Pão de Açúcar à Gávea e ao Corcovado. O etnólogo ganhou da ABL artefato dos nhabiquaras e aurás cuja cultura descobriu. Colocou, logo, o tamborete, do mais precioso geomestrismo indígena, no relicário da sua biblioteca, que aconchega a brasiliana mais atualizada do nosso moderno diálogo com a França.


De toda forma o Rio mereceu a complacência final do sábio: o carnaval, visto aqui, sugeriu-lhe a força da nossa mescla e a valorização do "impuro" tão impressentidos, ainda em meados dos 30. Era esta a época em que Jean Dormesson, outro dos "brasileiros" da Casa de Richelieu, filho do Embaixador de França então entre nós, viveu uma Ipanema em começo de construção, e a folia do "corso da Avenida Rio Branco", a guardar, nos ouvidos, o refrão da marchinha "Mamãe eu quero", que repetiu no "Grand Salon". Existe, hoje, um veio de encontro natural entre as casas do Quai Conti e da Presidente Wilson, no laço imediato, do franco-argentino, Hector Bianchotti, ou do pioneirismo de Marc Fumaroli ao vir à Casa de Machado de Assis, quando do nosso Centenário. O romancista e grande advogado exprime, hoje, o melhor da grande cultura do iluminismo, e da fala do salão do "século de ouro", que tem os seus textos pelas gerações, já, da cultura digital. Sensibilizam-nos as presenças, entre outros, de Pierre Messmer, René Remond e Jacqueline Romilly, a maior especialista hoje da Grécia, na formação da nossa Latinidade, e atentíssima à fieira de discursos da tarde.


No jantar entre as duas Academias, o Cardeal Lustiger ressaltou aspecto significativo de nossa cultura, qual o de ter a Igreja aqui se transformado no testemunho exemplar do Vaticano II. Deverá, inclusive, vir ao Brasil em meados de 2006, no desejo de aprofundar, onde a rememoração da nossa história pós-concílio Vaticano II, cada vez mais objeto de um interesse universal, pelo trato dado à Teologia da Libertação, à raiz comunitária do trabalho pastoral, ou à mobilização política, tão decisiva, há uma trintena de século, para o novo arranco da cidadania brasileira.


A Sorbonne ofereceu à ABL a Sala Liard para uma abordagem crítica e renovada da nossa literatura, entendida como a própria vida do espírito de um país que acordou tarde para a universidade e teve, de fato, na Academia, e na expressão primeira da sua belle epoque, a marca nascente da nossa identidade. Ivan Junqueira lastreou-a à matriz latina, e ao contraponto também com a produção da América hispânica, numa visão de fato diferenciada da nossa continentalidade. Devemos a Antonio Carlos Secchin, a Antonio Olinto e a Ana Maria Machado o esforço inovador, e marcado pela perspectiva crítica, da poesia, do romance e do conto brasileiros. O auditório teve ainda a oportunidade de ouvir o estado atual da nossa crítica e da nossa filosofia deixadas à seiva de sua melhor compreensão nas abordagens de Eduardo Portella e Sergio Paulo Rouanet.


Arrematou-se o seminário pelos comentários sobre a reciprocidade de perspectivas da visão de nossas culturas o estudo atual da arte francesa na sua visão de Brasil - e vice-versa. Esboçou-se uma avaliação do estado atual de recepção das idéias, clichês e novas interpelações dos estudantes da Paris III, sobre o intercâmbio da vida do espírito entre as duas nações.


Este quadro se desenha, no século passado, desde os padrões amorosamente imitativos da nossa Academia, expressos pela acolhida de Anatole France como o senhor das luzes universais, até a força prosélita em que, ainda, repetimos a França, nos momentos em que pretendíamos denunciar a belle epoque. Até onde a Semana de Arte Moderna de 22, na orquestração de Blaise Cendrars com a jeunesse dorée da Paulicéia extremou-se na ruptura como moda e não exigência interior, no paroxismo da mimese, senão de sua pantomima? A interlocução da Sorbonne foi apenas o começo, nas propostas feitas pelo seu Instituto de Estudos da América Latina, de um aprofundamento deste percurso do grande pensamento francês, entre os exilados, os profetas os filósofos maiores, que assentaram muito de nossa contemporaneidade. É o que, ao lado dos fundadores da USP, evoca a presença sucessiva, e tão díspar, de Claudel, Bernanos, Malraux e Sartre, em peregrinações ou visitas-choques, antecipando a presença contemporânea dos nossos pós-modernos. Edgar Morin tem no Brasil o maior circuito dos cultores do pensamento complexo, Jean Baudrillard disputa hoje, entre nós, o mesmo impacto que desfruta nos Estados Unidos, e foi na fidelidade aos seus alunos de Juiz de Fora que Derrida fez a sua última viagem, em 2004. O mordente do debate desses últimos dias em Paris acorda inquietações, para além de ressonâncias de estilo entre o pensamento de uma França hoje em estranheza de Europa e de um Brasil cansado da rotina latino-americana.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 08/07/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 08/07/2005