Tive políticos próximos na família. Hoje em dia, para muitos brasileiros, dizer isso é pior do que se confessar descendente direto e admirador dos vendilhões expulsos do templo por Jesus Cristo. Mas acho que meu caso não é típico. Meu pai, que foi deputado estadual em Sergipe e vereador em Salvador, além de diversas vezes titular de secretarias estaduais ou municipais, tinha vocação de político, mas lhe faltava o talento para isso. Apesar de muito culto e bom orador, jejuava na arte e na matreirice necessárias ao político. E morreu depois de penar durante anos a construção de sua única casa, deixando somente a dita casa e uma pensão para a viúva. Portanto, não deve ter roubado e estou convicto disso, embora não possa dizer que ele tenha sido cem por cento infenso a mordomias, porque me lembro da gente passeando de carro oficial em Aracaju – e de nada mais, nesse departamento.
O outro político foi meu avô materno. Meu avô foi coronel, quando Itaparica ainda era interior. Como creio que já contei aqui, me lembro de eleições movimentadas, lá na ilha. A casa do coronel tinha acomodações externas para o eleitorado, que se movimentava durante todo um dia azafamado. Aliás, minto: não era somente um dia. Havia uma infraestrutura a manter. Analfabeto não votava e a prova de alfabetização era a assinatura do nome e, portanto, ninguém se preocupava em ensinar o eleitor a ler, mas a desenhar o nome. Talvez pareça fácil, mas podia levar meses, ainda mais que as refeições eram de graça, durante o curso. E ainda me lembro de Seu Nezinho do Baiacu, que parava para tomar fôlego, no meio da assinatura.
Cuidava-se também das muitas manobras envolvendo os envelopes com as cédulas (as chapas, como se dizia por lá). Supostamente, o eleitor escolheria suas chapas, as enfiaria no envelope e subsequentemente na urna. Mas os eleitores de meu avô, naturalmente, recebiam seu envelopes já prontos, como acontecia em milhares de municípios, ou mesmo todos eles, em maior ou menor escala. E com a rigorosa instrução de não mostrar seu conteúdo a ninguém, nem ao bispo. “O voto é secreto!”, advertia-se, como quem diz que, se alguém o mostrasse, entrava em cana dura. Na verdade, era precaução contra o golpe aplicado por todos os candidatos, que consistia em pegar o envelope “somente para ver” e dar um jeito de trocar uma ou mais chapas, ou mesmo o próprio envelope. Havia especialistas nessas operações e meu avô usava os serviços de vários, tanto na ofensiva quanto na defensiva.
Porque muita gente só admitia votar de paletó e gravata, um setor especializado era dedicado ao vestuário e se forneciam até umas borrifadas do perfume que alguns achavam indispensável. De forma análoga, os calçados. Muitos eleitores só haviam usado sapatos uma ou duas vezes na vida e assim mesmo alheios ou herdados, enquanto outros desconheciam seu emprego, chegando a manifestar um certo medo deles. (Seu Nezinho só calçava sapato gemendo e invocando o amparo dos santos). O setor das refeições, comparável apenas ao do jejum da Semana Santa (tinha gente que aparecia para jejuar na casa de meu avô já na segunda-feira e só ia embora no sábado de Aleluia, de pandulho estufado de todo tipo de comida, com a rigorosa exceção de carne, que era o alvo exclusivo de jejum), funcionava em sistema de rodízio desde as quatro da manhã e começava de véspera, com a chegada, em saveiro, canoa ou lombo de jegue, do eleitorado do “interior”, longe da sede do município.
Também não creio que meu avô tenha roubado. Ele mesmo, que eu saiba, nunca exerceu cargo eletivo nenhum (tinha um belo emprego público federal), mas também não acho que, à parte sua sinecura, tenha metido a mão em dinheiro, público ou alheio. Pelo contrário, só vivia envolvido em assuntos e polêmicas cívicos, tanto assim que não ligava para as duas ou três fazendolas e o resto do patrimônio que herdou. Caiu tudo em usucapião dos ocupantes e sobrou somente a casa (onde eu nasci e que, embora uma fração do tamanho original, está até hoje com a família). De resto, ele gostava de exercer seu poder municipal, de protetor dos necessitados, que em troca deviam somente gratidão eleitoral, de defensor das tradições da ilha e de árbitro de disputas.
Tudo o que contei era normal e, com as necessárias diferenças regionais e circunstanciais, praticado em todo o país. Em grande parte dele, ainda é, com outras caras e nomes, mas a mesmíssima coisa. Desde que nos entendemos, vemos os poderosos enricar ou “se fazer”, é parte de nossa vida. O voto é ainda trocado por um favor ou pela solução de um problema pessoal. E nunca, no Brasil, o cargo público foi visto como serviço. Servir é a última coisa que ocorre ao chamado servidor público, estendido o termo ao governante. Nossa política não é feita de ideais, mas de ambições. Estamos acostumados a ver a política como um meio de ascensão pessoal, não somente de status, mas patrimonial e suspeito que, no fundo, a maioria de nós considera isso legítimo. Estamos habituados ao cartão de apresentação, ao pistolão, ao tráfico de influência, aos privilégios para os quem têm os relacionamentos certos.
Acho que não há exceções, entre os brasileiros: todo mundo, desde a infância, ouve falar que a maioria dos políticos é formada de corruptos e ladrões. Todos sabem da história de pelo menos um rapaz pobre, de família humilde, cujo pai tinha uma pequena padaria de subúrbio e que hoje é gordo e bilionário. Assim ou assado, fomos criados vendo esse cenário se reproduzir e – aí é que é o chato – segue-se a conclusão é que todos nós, de uma forma ou de outra, temos uma formação de corrupto e, em certos casos, até uma empatia meio cúmplice com alguns deles, quase alguma ternura. Por isso é que continuam ativos e impunes. Nós compreendemos, a vida é assim mesmo.