Chirac e Schroeder deixaram ostensivamente Washington antes do funeral-monumento de Reagan. De Gaulle, que compareceu às exéquias de Kennedy, de fausto análogo na capital do império, teria feito, sem dúvida, o mesmo. Impossível imaginar-se espetáculo mais apurado em todos os drinques de celebração da hegemonia, que a dessa herança ostensiva assumida por Bush, do imaginário que abriu o caminho às Star Wars , ao mercado absoluto e ao desenfreio da primeira e segunda guerras do Iraque - tal pai, tal filho, no Salão Oval.
Avançada também nestes dias a inquisição do Senado às personagens-chave de Washington sobre o horror das torturas em Abu Ghraib, a admissão da inexistência das armas de destruição de massa no país de Saddam, a falta de prova da conexão entre a al-Qaeda e o ditador derrubado.
O funeral permitiu uma triunfal passagem a limpo do sistema, na criação a fórceps do mito Reagan. Começava também no Capitólio o epitáfio da era Bush.
O espetáculo foi programado no seu rigor, de costa a costa, na marcação minuto a minuto por Nancy Reagan, que, segundo o "New York Times", pôde se dedicar, durante a última década, a todos os detalhes da celebração descomunal. Do vaivém do Air Force One à bota solitária do caubói presidente, pendida da sela do cavalo negro, a quem tomaria a palavra nas exéquias, à escolha finalmente decidida, há alguns meses do tenor que entoaria a "Ave-Maria" na Catedral na presença de todos os presidentes vivos.
Pescoços duros para o cumprimento contrafeito, o aperto de mão fugacíssimo, ou o aceno generoso diante da mídia universal. É como se a longa e já deslembrada desaparição do presidente vitimado pela alzheimer permitisse duas saídas de cena. A da comovente despedida, há quase uma década na televisão, e a do caixão agora, servindo à mensagem de retrocesso histórico desta intemporalidade, em que o governo Bush quer hoje embalsamar a nação americana. Nem de propósito o réquiem dominante veio da mensagem preparada por Margaret Thatcher - a indomável dama de ferro, hoje atingida na fala.
Foi a ocasião de voltar-se à lembrança do "império do mal" e do bom combate pela consagração triunfal do sistema. Vã a frase de Reagan que não fosse óbvia. Difícil o elogio que não se escorasse na bonomia e no coloquial do ator-presidente (risadas gerais a ecoarem no templo), no recurso à trívia simpática, exposta a toda maquiagem histórica. Na mais alta canonização da hora, não faltaram as sugestões: que se mudasse para a efígie de Reagan a nota de dez dólares ocupada por Jefferson, tal como se discutiu abrir mais espaço na pedra inteira do Monte Rushmore para inscrever a face do marido de Nancy, no lado de Lincoln e de Washington.
O esplendor da despedida se fechava no recado com que a hegemonia pôde se celebrar num quadro vivo mundial. O presidente hollywoodiano, no seu féretro, consagrado como vencedor exclusivo da Guerra Fria, derrubador do Muro, herói único da reunificação alemã, a ofuscar o seu sócio em todas essas etapas, Mikhail Gorbachov.
Como se cumprisse o papel de derrotado-mor, o pai da Perestroika ali se encontrava, a sancionar, com seu silêncio, a versão do mundo dos republicanos, frente a Carter ou Clinton, ou ao país que ora prenuncia a vantagem clara e persistente dos 5% de Kerry no próximo 4 de novembro.
A semana da exumação votiva de Reagan competiu com os lances da TV americana, com a audiência dos democratas no Senado - a finalmente vencer a síndrome do Patriot Act - a perguntar ao governo da última responsabilidade por Abu Ghraib; dos prazos de evacuação americana de Bagdá; dos limites da soberania provisória após a volta de Paul Bremer.
Impossível, diante das questões de Ted Kennedy a Ascroft, o procurador-geral responder com sumário "sim" ou "não" da consciência em tensão que percorreu o país, em contraponto à do funeral. O engasgo do sistema constrói o epitáfio das eleições plebiscitárias de novembro próximo. E aí, a opção entre dois futuros de civilização. Mais até do que de duas Américas.
O Globo (RJ) 27/6/2004