‘Simples assim. Entendeu ou quer que eu desenhe?”
A toda hora estamos esbarrando em variantes dessa atitude arrogante, seja em comentários na internet ou em palpites que surgem em conversas ao vivo, com a pretensão de calar o outro. Por vezes, vem revestida de um tom teórico peremptório, cheio de ecos intelectuais, a insinuar que qualquer discordância é estúpida. Nem por isso deixa de ser uma forma de ofensa, a chamar o outro de burro.
Neste momento em que os eleitores brasileiros sentem a necessidade de analisar a nossa atual crise com algum exame que vá além da superfície imediata, pode valer a pena lembrar que nada é “simples assim”. Não dá para resumir num mero desenho. Mas convém admitir que grande parte do retrocesso que aí está a nos assombrar é fruto de uma complexa conivência da nossa sociedade. A tal omissão dos bons que permite a expansão do crime e da injustiça. Às vezes por comodismo, às vezes por simplismo, às vezes por recusa a admitir o próprio engano. E como fomos enganados...
Votando em Lula, Dilma, Aécio, Cabral, Cunha ou Renan, e tantos outros, fomos engambelados por belas palavras, fartas promessas e bom mocismo. Como se tudo fosse simples assim. Só que não é. Convém não esquecer. É preciso admitir que fomos traídos. Transformar o arrependimento em alguma sabedoria. Aprender com os erros, para não repeti-los. Ao menos, tentando escolher melhor o futuro Congresso.
Não que a sociedade tenha ficado apática e de braços cruzados. Movimentos sociais se organizaram e reivindicaram. Manifestos e abaixo-assinados se espalharam pela internet. Conseguiram gerar fatos concretos e positivos, como a Lei da Ficha Limpa. Ou sugerir as Dez Medidas contra a Corrupção. Mas agora se assiste a um retrocesso que tem como objetivo atrapalhar toda e qualquer melhoria nessa área. E em outras.
O fato de não se fazer uma reforma eleitoral tem muito a ver com isso. Continua havendo uma proliferação de partidos que seria cômica se não fosse trágica — mas que é muito eficiente em atrapalhar a governabilidade e estimular esse abominável balcão de negócios no Congresso. Os exemplos se multiplicam.
A análise racional mostra que é indispensável para as futuras gerações que se faça já a reforma da Previdência, cujo desequilíbrio paralisa investimentos em saúde, educação, saneamento. No entanto, aí estão os políticos barganhando e impedindo que ela se faça, mesmo reduzida, desvirtuada e insuficiente.
Em outro âmbito, a recusa em fazer a reforma eleitoral (tanto no Legislativo quanto no Judiciário) prorroga a existência desordenada de partidos e ameaça recuos na Lei da Ficha Limpa ou na determinação do STF de que a pena comece a ser cumprida após decisão em segunda instância. E continuamos sujeitos a esse Congresso tecido de políticos corruptos, incapaz de dar um mínimo passinho à frente que faça avançar alguns milímetros.
A isenção fiscal para igrejas resulta em bancadas religiosas retrógradas que esgrimem argumentos autoritários para impor à nação atitudes e comportamentos medievais. A degradação pública e o opróbrio são amplamente utilizados nos linchamentos morais a que assistimos a todo momento. Já chegamos ao ponto de literalmente queimar bruxas — ainda que por enquanto nos limitando ao simbolismo de bonecos que as representem, como se viu no caso da filósofa Judith Butler. Mas nem sempre é só simbólico: a dona de casa Fabiane Maria de Jesus foi linchada até a morte no Guarujá a partir de uma falsa acusação, na internet, de sequestrar crianças para magia negra. Uniu-se a reles mentira com a sanha de condenar sem apurar. Males atuais.
Tudo isso desvia da justiça necessária. Vemos todo dia as tentativas de retrocesso que impedem a punição de culpados de corrupção, na Lava-Jato ou fora dela. Vale tudo, a começar pela manutenção do foro privilegiado para milhares de políticos — e agora se fala em estendê-lo a ex-presidentes.
O discurso para a aparente justificativa é sedutor: alardeia a garantia de direitos dos investigados e acusados (que têm mesmo de ser garantidos). Mas esquece a garantia do direito da sociedade, de não ver perpetuada a impunidade de criminosos por meio de manobras e chicanas.
Esses diversos fios se tecem em tramas e tramoias. Pelo menos, fiquemos atentos para perceber a complexidade do mecanismo. Há que abrir os olhos para votar melhor no futuro. Nada se resume a um “simples assim”.