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Nem que o mundo caia sobre mim

 

Nem tudo está perdido: o Brasil está proibido pela Constituição de fabricar armas nucleares e só poderá usar a energia atômica para fins pacíficos e para o bem maior da humanidade. Não é nada, não é nada, mas o Paraguai e a Bolívia já manifestaram, anteriormente, os mesmos e sadios propósitos, vale dizer, o mundo deverá se curvar ante a trindade augusta formada pelos três paladinos da paz e da prosperidade entre os povos.

Inspirado em tão salutar exemplo, julgo de meu dever fazer algumas promessas para tranquilizar amigos e desafetos, povos e gentes de nosso planeta e alhures. E, por falar em alhures, lá vai a primeira promessa: prometo nunca mais dizer ou escrever a palavra alhures.

Na realidade, nem sabia onde era alhures. Um amigo, homem de atitudes firmes, entregou-me os originais de um romance para que eu o encaminhasse à editora que tem o atrevimento de publicar meus livros. E me ameaçou: "Se a sua editora não o fizer, avise que vou publicar alhures!". Pensei que fosse o nome de alguma editora que eu não conhecia.

Prometo também que jamais aceitarei, em hipótese alguma, a indicação para substituir o papa Bento 16 ou qualquer outro papa. Por mais que me peçam e roguem, por mais que o Divino Espírito Santo se digne manifestar-se a meu favor, garanto que não darei o meu "sim" -e os cardeais da santa Madre perderão seu tempo se insistirem em me eleger para o trono de são Pedro.

Prometo também que jamais aceitarei o papel de Radamés na ópera "Aida". Nem que o mundo caia sobre mim -como no samba do Lupicínio Rodrigues- compactuarei com um atentado de tal porte e malefício. Ainda que me peçam de rastros, não aceitarei semelhante papel. Na pior das hipóteses e para assumir algum tipo de compromisso, indicaria para o papel o ex-ministro Antônio Palocci, com alguma maquiagem ele ficaria parecido com o Luciano Pavarotti, que se tornou notável cantando "Celeste Aida" com as roupas e armaduras das tropas do faraó.

Mesmo assim, se além do Divino Espírito Santo e dos cardeais da cúria romana, sofrer a pressão dos cearenses e nordestinos em geral, aceitarei o papado desde que possa canonizar para todo o sempre o padre Cícero e o padre Marcelo Rossi, mesmo em vida.

Igualmente prometo que jamais esbanjarei US$ 450 milhões em iates, mulheres de boa ou má vida, cavalos de corrida e jogatinas, onde o pano verde avilta os melhores caracteres e rebaixa a dignidade do ser humano ao estágio da concupiscência mais sórdida: a do amor à vil pecúnia, o "excremento do demônio" segundo santo Agostinho, filósofo da predileção de minha amiga Lygia Fagundes Telles.

E -questão fechadíssima- não aceitarei, nem com montanhas de ouro à minha disposição, fazer uma transfusão de sangue num desses hospitais que os rapazes da imprensa antigamente chamavam de "nosocômios".

Como se vê, não é apenas o Brasil, em gentil companhia da Bolívia e do Paraguai, que revela bons sentimentos. No âmbito individual, é possível e necessário que cada um de nós faça algo pelo bem-estar da humanidade e pela segurança do mundo.

De minha parte, tenho a consciência tranquila de que não poderei realizar todas as promessas que fiz acima. Não serei eleito papa, não cantarei a ópera "Aida" nem outra ópera qualquer, e -Deus é testemunha- jamais esbanjarei os US$ 450 milhões que nunca terei.

O diabo é que, se um dia conseguir em minhas burras alguma quantia parecida, eu terei de repensar essa promessa.

Não gastando esse dinheiro em iates, em mulheres ariscas e cavalos lerdos, entregando-me desvairadamente aos prazeres da carne, certamente gastarei a grana em alguma coisa pior, por exemplo, financiar golpes de Estado no sudeste asiático ou no setentrião africano. Não ajudarei o governo na construção de novas usinas nucleares, talvez dê alguma coisa para a transposição das águas do rio Tietê para algum outro lugar.

Mas sossegai, amigos e desafetos, povos e gentes do Universo. Jamais terei esse dinheiro todo. Para falar a verdade, e repetindo Rabelais, posso garantir que não tenho nada e devo muito. O resto eu deixo para os pobres.

Folha de São Paulo, 17/6/2011