O encontro recém-findo entre os presidentes Lula e M'becki, na África do Sul, abriu-nos marcas críticas para este novo protagonismo brasileiro, frente ao mundo global de Bush, ou de após a sua eventual derrota em 2004.
Deparamos um universo regido pela hegemonia, tão além da dominação clássica. É o próprio desta sociedade complexa, onde não há mais centro e periferia ainda possível. Nem se pode escapar à extensão dos condicionantes do mercado único. Nem dele se subtraem os "danados da terra", como chamou Franz Fannon aos expulsos pelo sistema do velho colonialismo.
Já semana antes da reunião de Pretória, as posições de M'becki, na Internacional Socialista, celebrada em São Paulo, anteciparam o teor da aliança com o Brasil. Há que somar a ação externa dos dois países mesmo antes da formulação de uma alternativa possível ao neoliberalismo, vencendo uma visão de mundo que teima, ainda, em manter contraposições geográficas para fortalecer os controles centrais.
Impõe-se este desencapsulamento regional e, de logo, convocando também a Índia, para uma nova e ativa frente internacional. Depois do colapso do segundo mundo, não há porque alinhar-se um terceiro, tal como insistir em periferias, entre teimosas e sonâmbulas. É o propósito agora deste Nepad - Novos Parceiros para o Desenvolvimento Africano - surgido da reação ao neoliberalismo global, pela África, miserável, senão já doente, desfeita na fila de auxílios e pedidos às burras de Washington ou da Europa Ocidental.
Não é outro o quadro, quase meio século após, do colapso do sonho da independência
continental, e das guerras civis renitentes, a última das quais acaba de ensarilhar armas, com a morte de Savinb, assediando por três décadas a normalização de Angola. Tal foi o percalço também da Nigéria rachada pelo Biafra, ou do Zaire, do Katanga de Moshe Tchombe.
E todo um naipe de áreas necrosadas nas terras de ninguém, dos conflitos tribais e das gangues nômades, da Serra Leoa, da Libéria ou da Somália. Tal como se libertou da luta fraticida, em Ruanda e Burundi, dos Tutsis e Hutus, a África de nossos dias exibe um indiscutível ativo histórico. Por maiores que fossem os intentos neocoloniais, da última trintena, mantêm-se as soberanias na íntegra dos territórios originais, nascidos da independência dos 60.
O Nepad busca uma nova voz internacional, acima de qualquer suspeita, e em bem de uma estratégia nova e de fundo para a mudança possível. Juntou três lideranças nascidas de eleições genuinamente democráticas, depois das tenebrosas violências ao voto que atingiram a África, somando ao presidente sul-africano, Buteflika, da Algéria, e Obansanjo na Nigéria.
A regressão autoritária desmoralizou outros companheiros do mesmo propósito inicial, inviabilizando o crédito internacional da Zâmbia e da Tanzânia, sem se falar do opróbrio em que o último pai fundador da África pós-colonial, e ainda no poder, Robert Mugabe, do Zimbábue, se transformou num régulo do situacionismo a ferro e fogo, e a qualquer custo.
O alinhamento transcontinental de M'becki e Lula, crescerá pela visita de nosso presidente à Índia. São três nações que hoje convivem com o neoliberalismo, garantiram a sua viabilidade, mas reclamam o passo adiante.
Brasília e Nova Dehli governam países continentais. Soma-se-lhes uma voz mais que estratégica na barganha internacional, qual a de Pretória, no comando de uma reserva mineral única para as previsões de carência, a médio prazo, do mercado global. Todos dispõem de um novo trunfo de desenvolvimento tecnológico, ainda que superconcentrado, e não foi de outro teor o principal acordo de cooperação entre Lula e M'becki, como o assinado pelo ministro Roberto Amaral e seu correspondente sul-africano.
A recente Conferência de Cancún já antecipou esta nova convergência de nações que não se vêem mais como periferias. Seus trunfos são, tanto esta nova quebra dos apartheids geográficos, quanto as brechas de negociação internacional, ou de novas flexibilidades das bancas do FMI ou do Banco Mundial, após a confrontação argentina.
A nova risk society passa a avaliar os impactos desestabilizadores macrossociais das quebras dos países pobres, bem como a contaminação terrorista que se pode apossar dessas novas terras de ninguém. A discussão da Alca passa agora a outras arenas que se expõem no âmbito, por exemplo, da OMC, a novas barricadas de pressão. Foi-se a agenda do primeiro empolgamento das novas regras de jogo da hegemonia americana, assentadas no seu quintal geográfico.
Da mesma forma, há que reavaliar nossos verdadeiros trunfos frente à pós-estabilização e às escaramuças ganhas por países como a Argentina diante da banca internacional. Por outro lado, até onde é, por exemplo, tão importante quanto nos tempos do universo bipolar o ganho de cadeiras cativas, brasileira e sul-africana, no Conselho de Segurança? M'becki foi incisivo, na pressão dupla pela reivindicação.
Ambas as partes supervalorizam esta carta velha, frente à desmoralização da ONU pela nova hegemonia americana. No castigo da aceleração do jogo internacional, os impasses do pós-Iraque mostram como entram em choque as premissas do controle estratégico e militar recém-estabelecido, para delas fazer defluir a negociação econômica.
A ida à África de Lula marcou uma nova abordagem estratégica num tempo que pode, de súbito, vencer os jogos de controle-limite que defluiu do abate das torres gêmeas, e da cruzada ocidental. O apoio hindu e africano às nossas teses, na última reunião do México, sublinha estas novas alavancas de um possível "eixo do bem", fora da prognose dos mercados globais, à ilharga das stars wars.
A conversa de Pretória prospera a largo prazo, tanto se abram agora as brechas no monólito de poder, nascido dos fundamentalismos, de um lado e outro da civilização do medo.
O vespeiro de Bagdá a urgir a retirada americana, criando outra síndrome do Vietnã, abriu o diálogo com um Estados Unidos de volta de um sonho hegemônico. Sobretudo a outros cenários e mercados, sensíveis a riscos e oportunidades, livres da fatalidade periférica.
Sairiam das acomodações subalternas, frente a uma globalização sujeita, ainda, a sustos e à fuga aos fatos consumados, como o dos impasses do Mercosul, ou dos pactos da misericórdia africana. Cancun, já se vê, foi mais que uma brecha fugaz no que hoje une o Brasil, a América do Sul e a Índia como parceiros súbitos de um mundo sem periferia.
O Globo (RJ) 21/11/2003