Este meu livro Crônica de uma guerra secreta, lançado agora no ocaso de minha vida, tem como pedra angular uma aventura de mocidade que já fez mais de meio século (1944-1946), ao tempo do reino de Perón e Evita Duarte. Trata-se de uma aventura, que conservei até hoje em segredo absoluto, até mesmo de minha mulher e filhos, consistindo em penetrar nos recintos mais vigiados do Archivo General de la Nación e fotografar documentos ultra-secretos, altamente comprometedores, do governo argentino. Isso, vale salientar, muito antes de James Bond nos ter ensinado o caminho.
Mais adiante, quando pensei em doar os negativos, então em lâminas de vidro, ao Centro de Memória da Academia Brasileira de Letras, achei prudente esperar mais alguns anos porque os governos militares que sucederam a Perón, ainda mais nacionalistas e radicais, poderiam abrir inquéritos e acabar punindo funcionários inteiramente inocentes. Hoje, posso contar tudo tranqüilamente. Os funcionários do arquivo que ainda não subiram ao céu estarão, pelo menos, aposentados.
Jovem diplomata sequioso de emoções, tive a ventura de passar em Buenos Aires os últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Guerra em que o Brasil se bateu para valer ao lado dos Aliados, enquanto a vizinha Argentina se enredava perigosamente nas tramas do nazi-fascismo. Estávamos, assim, em lados opostos no conflito.
Quando consegui acesso ao manifesto do GOU (Grupo de Oficiais Unidos), a passagem que mais me impressionou foi aquela em que o coronel Perón proclamou a seus camaradas: ''A luta de Hitler, na paz e na guerra, nos servirá de guia''.
O fato de Perón já estar em ligação próxima com o serviço secreto alemão ficou mais do que evidenciado nas comunicações telegráficas do espião-mor, Hans Harnish, a seus chefes em Berlim, sobre a Blockidee, - o bloco austral a ser liderado pela Argentina, com o Brasil a cabresto.
O tema me apaixonou pela resto da vida. Mesmo nos postos diplomáticos que exerci a seguir, nunca deixei de me interessar pelo que se passava nos bastidores do poder na Argentina. Logo depois, surgiram provas desse estreito envolvimento com o nazismo, a ponto de um general argentino, então chanceler, declarar a Hans Harnish: ''Não me agradeça, porque o destino da Argentina depende da vitória alemã''. A intimidade desse espião alemão com os militares argentinos vinha de longe, pois já os havia ajudado a derrubar o governo civil do Presidente Castillo, com o fim de transformar a Argentina em aliada da Alemanha.
Esta ''crônica'' é chamada de ensaio, porque junta a evocação de experiências pessoais ao resultado de pesquisas a que me dediquei, para decifrar episódios da guerra secreta, notadamente a penetração nazista em nosso continente. O meu público-alvo é sobretudo a mocidade estudiosa, para que conheça a extensão dos riscos que nos rondaram na década de 40. Ao rigor acadêmico, preferi a exposição descontraída, freqüentemente coloquial. Meu empenho foi o de mostrar às novas gerações como essas coisas se passaram na vida real ao tempo dos seus pais. Nada impede que se repitam.
Antes do fim da guerra, Juan Perón já possuía um ambicioso plano para atrair e abrigar na Argentina o maior número possível de refugiados alemães. E entregou a Von Leers, adido militar à embaixada alemã em Buenos Aires, 8 mil passaportes argentinos e 100 mil cartões de identidade com os quais 90 mil alemães passaram a usufruir depois um ''feliz refúgio na Argentina''. No dia 8 de agosto de 1944, Himmler, o carrasco da Gestapo e depois ministro do Interior do Reich, recebeu em Estrasburgo a sua parte nesse estoque de documentos e a doação desses passaportes coincide com o início das famosas contas de Perón e Evita na Suíça.
Com a capitulação alemã, em 1945, logo começaram a chegar a Buenos Aires numerosos refugiados, inclusive criminosos de guerra, que pagavam em dólares os seus passaportes fornecidos pelo governo argentino. O cônsul-geral da Argentina em Barcelona, Miguel A. Molina, cobrava de cinco a sete mil dólares por passaporte.
Os navios da Compañia de Navigación Dodero usavam a rota Gênova-Buenos Aires, com escala em Barcelona, convenientemente situada logo após os controles britânicos em Gibraltar. Alberto Dodero, íntimo e sócio de Perón, acumulou polpudos lucros, transportando um número enorme de fugitivos alemães. Um dos destacados integrantes desse tráfico humano rumo à Argentina, em 1949, foi o Dr. Joseph Mengele, tenente-coronel médico de Auschwitz, além de outros nazistas famosos, que em Buenos Aires receberam acolhida e proteção: Adolf Eichmann (artífice do extermínio de judeus, que vivia tranqüilamente em Buenos Aires com um passaporte em nome de Ricardo Klemente até seu seqüestro rocambolesco por um comando israelense); Klaus Barbie (com o nome de Klaus Altman); Gustav Wagner, Franz Stangel, Hans Rudel, Otto Skorzeny e centenas de outros responsáveis pela ''solução final'', para os quais Buenos Aires era a Meca dos nazistas.
Jorge Camarasa, laborioso pesquisador desse período, sustenta que milhares de nazistas, entre os quais criminosos de guerra, chegaram a Buenos Aires, entre 1947 e 1952, recebendo proteção do governo. Alguns deles, mesmo sob mandado de captura e extradição, foram incorporados ao aparato do Estado, para burlar as gestões da justiça estrangeira.
A colaboração de Perón com os nazistas constitui fato histórico, e não um estigma que cumpre apagar ou do qual devem se envergonhar os argentinos. Pois pior seria certamente o esforço de remover vestígios para ocultar a verdade. Ainda que dispersa, a documentação existente é abundante. É possível reconstituir a história de cada um desses nazistas, com informações que se encontram em Buenos Aires, nos cartórios, nos arquivos policiais, registros públicos, escrituras, atas nas Juntas Comerciais e procurações. Muitos deles trocaram de nomes, adquiriram ou venderam propriedades, casaram-se com argentinas e tiveram filhos argentinos. ''Alguns chegaram a movimentar fortunas incalculáveis, enquanto outros serviram às ditaduras da Argentina, do Chile, do Paraguai e da Bolívia''.
Wladimir d'Ormesson, pai do escritor e acadêmico francês, era o Embaixador da França em Buenos Aires naquele tempo e receava dar de cara com algum desses nazistas pelas ruas da cidade. Foi, aliás, o que aconteceu comigo mesmo, várias vezes. O nazismo na América do Sul, com sua conexão argentina, está mais do que comprovado com documentos e apontamentos inesgotáveis.
E o expansionismo peronista está devidamente caracterizado na frase pronunciada por Juan Perón, em 3 de maio de 1943, no Manifesto do GOU, que o guindou ao poder: ''Com a queda do Brasil, o continente sul-americano será nosso''
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 20/10/2004