Navegar é preciso, sem dúvida. Como também escrever é preciso. Mapa da Europa, no fim do século XV, nos mostra Portugal como om "fim do mundo", uma verdadeira "finisterra", além da qual tudo era mistério. A latinidade ali se espremia - e também se exprimia - e terminava diante do mar. Para vencer aquele obstáculo, era preciso navegar.
Colóquio promovido pela Fundação Lusíada, de Lisboa, publicou os textos ali apresentados num volume chamado "A geopolítica dos descobrimentos portugueses". Escrevemos sobre o assunto, entre outros, Paulo Mercadante, Ana Maria Moog Rodrigues, Antonio Braz Teixeira, Gerardo Mello Mourão, Elísio Galla e o autor destas linhas.
Para vencer o oceano, Henrique, o Navegante, fez Portugal navegar. Postado em Sagres e cercado de cientistas - num organismo semelhante ao de um centro universitário de nossos dias - desenvolveu a idéia de um tipo especial de navio, a caravela. As embarcações do Mediterrâneo, mar interior, mostravam-se frágeis diante do Atlântico.
A nova tecnologia - de navio com leme de cadaste e a adoção de pano latino para a vela - determinou uma profunda transformação na resistência dos navios de época. Antes, nas relações com a Europa com o mundo além-África, era a caravana que transportava, unia, promovia encontros. Vencendo o grande oceano, "a caravela derrotou a caravana", diz o historiador almirante Teixeira da Mota.
Todas as mercadorias, inclusive ouro e especiarias, até então manejadas pelas caravanas árabes no abastecimeto dos mercados europeus, passaram a ser transportadas em caravanas, em geral portuguesas. Navegar era preciso.
Teixeira da Mota acrescenta: "A rota marítima dos portugueses supera nitidamente a rota transmariana. A caravela vencia a caravana". De seu ponto de estudo em Sagres, D. Henrique mandava seus exploradores para partes da África - Guiné, Warri, Benim - até que, mais tarde, eles ultrapassaram o "Cabo do Não" e atingiram a Índia, o Japão, Malaca e Macau. Navegar era preciso.
Mínima havia sido a população quando a população de Finisterra criara seu idioma. Vindo do Latim, com fortes traços de árabe e antiga influência aos visigodos e da língua original dos habitantes lusos da região, atingiria o português sus. Maioridade lingüística ainda antes de Camões imprimir o seu poema épico em 1572. Um épico na linha de Homero com "Odisséia" e de Virgílio com "Eneida". Vale a pena lembrar que o nome de Lisboa ou Ulissipona pode ter vindo de Ulisses e estar, assim, desde o início, ligado a viagens e conquistas épicas.
Portugal tomou o mar para si, e seu poeta épico foi um poeta do mar. Não apenas em seus versos, mas também na vida que viveu. Pouco se sabe de viagens fora da região natal de cada um - seja por parte de Homero, Virgílio, Shakespeare ou Milton. Camões, não. Navegar era preciso e ele navegou. Atravessou os grandes oceanos, foi além do ponto Sul na África, esteve na Ásia, a tradição o coloca inclusive em Macau, chegou a mergulhar com seu poema no mar.
Logo depois, em 1578, Portugal viveria a maior de suas tragédias, quando Dom Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Kibir. Morreria também Camões, em 1580, ano em que Portugal cairia sob o domínio da Espanha, situação em que ficaria até 1640. O sonho de um império continuaria com o Padre Antonio Vieira naquele mesmo século, para ressurgir mais forte em 1888, quando um grande poeta nasceu em Lisboa.
Com ele surgiram mudanças de todos os tipos. A não menor foi que Fernando Pessoa quebrou a linha da Latinidade da poesia portuguesa, embora não tivesse deixado de ser latino, mas sem ligação maior com a cultura francesa por onde passava o rio de Roma.
E se o mito de Dom Sebastião ainda nos cerca e vem pousar no Antonio Conselheiro, costuma aparecer-nos como vindo por mar, pronto para salvar o Brasil na corrupção que ameaça afogar o país desde o começo de um milênio.
"A geopolítica dos descobrimentos portugueses" é lançamento da Fundação Lusíada de Lisboa. Capa de Antonio Pedro.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 24/08/2004