A gravidade da crise boliviana tem a virtude de abrir uma brecha inovadora no processo político latino-americano. Claro, corremos o risco da primeira fratura de um país, desde a sua independência no século XIX. Estão em causa aí diferenças básicas de identidade, entre a matriz andina, no seu contexto Aimara, e a larga região de Santa Cruz, e da Media Luna, toda ela voltada para a plantação e a atividade extrativa, e responsável por 70% do produto nacional. Nela, se assenta a clássica economia de exportação, ao gosto e às exigências neoliberais dos mercados emergentes com a globalização.
Deparamos, numa ponta e outra, num mesmo quadro de destituição de renda, uma pobreza multissecular, e um padrão altamente concentracionário de riqueza, como permite o perfil semicolonial do leste boliviano. O ganho da Presidência da República pelo Movimento para o Socialismo juntou a emergência dos excluídos à militância direta de uma ação de esquerda, confrontando a opulência do país tradicional.
A ação de Morales só fez exasperar a contradição interna, e a busca de um sistema de redistribuição da riqueza de Santa Cruz e das províncias lindeiras. Tanto na sua clássica impunidade de tributação, quanto de precária remuneração dos trabalhadores, nas plantações e minas tradicionais.
O inédito hoje é que, a bem do avanço democrático, o reforço do poder do presidente tenha recorrido a instituto com impacto de dois gumes, sobre o país em impasse, após a vitória do candidato indígena-socialista. O Presidente antecipou à nova Constituinte o recall, típico da democracia sofisticada, da Suíça aos rincões escandinavos. Ou seja, o de reconfirmar o apoio popular aos Chefes do Executivo, de modo a manter, ou não, o mandato frente aos desgastes ou abusos de autoridade. Morales aposta no reforço de sua aura nacional, habilitando-o para o avanço do socialismo e sua possível vigência do outro lado do país comandado por Santa Cruz. Se reforçou, em percentuais nítidos, o apoio nacional, não o fez, de forma similar, em todo o território. Registrou sufrágios mais baixos na área oriental, cujas lideranças dispararam no seu reforço eleitoral. O que resulta desta convocação à democracia puxada às últimas conseqüências do voto? As lideranças regionais já eliminam o recurso clássico às Assembléias Constituintes, como desenlace dos impasses políticos. Só irão à La Paz se, de fato, e antecipadamente, celebrar o Presidente um pacto confederativo, assegurando uma autonomia quase soberana, implicando a tributação, o acesso à receita econômica externa e mesmo a dimensões importantes do poder de polícia e de segurança.
O recall chega aí ao seu impacto sem volta, na constituição das vontades nacionais se realmente postas à prática da democracia profunda. E vai a Morales a última e agonística decisão. Acertar o pacto confederativo de agora, ou tornar irrevogável o racha da Bolívia, entre o país Aimara e a República de Santa Cruz. E não há socorro chavista de último instante, na abominação em que o vêem, em condições conhecidamente grotescas, as lideranças de um país que não se quer nem fundamentalista, nem, sobretudo, vinculado à esmola do petróleo caribenho.
Jornal do Commercio (RJ) 22/08/2008