Não me darei ao respeito de ir ao cinema ver a Paixão de Cristo segundo Mel Gibson. Tampouco vi outras versões anteriores, nem mesmo a superprodução de Zeffirelli, que tem a fama de ser a mais respeitosa e edulcorada. Considero os Evangelhos como peças literárias, um "auto pastoril", como queria Renan. Não se traduzem em imagens e muito menos em ação.
O que fica valendo e valerá para sempre são aquelas rubricas genéricas, "naquele tempo", ou "disse Jesus a seus discípulos". Transformar o naquele tempo num tempo preciso é chutar de acordo com a tecnologia em vigor. Lembro aquelas vias-sacras feitas pela Pathé, no início do cinema, a Santa Família montada num burrico que avança aos solavancos. Ao fundo, e em sentido contrário, aparece um ciclista apalermado, sem saber que estava participando da fuga para o Egito.
Depois de morto e ressuscitado, Jesus sobe aos céus puxado por cordas pintadas com a mesma cor do céu nublado, seriam invisíveis na tela se de repente não aparecessem a mão e o relógio de pulso de um dos membros da turma que elevava o Filho de Deus para junto de seu Pai Celestial.
Quando criança, numa Sexta-Feira Santa, meu pai terreno levou-me para ver uma peça recorrente na praça Tiradentes, "O mártir do Calvário", que purgava os delitos acumulados durante o ano pelas coristas do teatro que ali se fazia. Sem mais nem menos, no meio da flagelação, o tenor Vicente Celestino aparecia e cantava a "Ave-Maria", de Gounod. O pai batia palmas e eu afundava na poltrona, envergonhado de estar ali, vendo coisas que imaginava mais bonitas e transcendentais reduzidas à piedade esculhambada.
Deixando de lado veículo e conteúdo, o cinema e a mensagem, continuo fazendo eu mesmo a produção, o roteiro, a interpretação, o guarda-roupa e os efeitos especiais das histórias de que gosto. Não gasto nada e ganho muito ao imaginar como as coisas seriam naquele tempo.
Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em 25/03/2004