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Não se pode sair nem um bocadinho

 

A gente custa a reconhecer certas verdades desagradáveis, mas o tempo acaba por impô-las. Nunca fui candidato a cargo público nenhum e, por conseguinte, jamais pedi votos a ninguém, nem sou responsável pela administração de qualquer serviço do Governo, de qualquer tipo. Mas a realidade conspira em contrário, e a dura verdade é que sinto no ar um dever indefinido de não deixar o país. Quando estou lá fora, sempre aprontam alguma coisa, até mesmo se se trata de país tão amigo e fraterno quanto Portugal. Começam a acontecer coisas lá mesmo, se bem que, no geral, somente na alfândega. A alfândega portuguesa, que me deu uma boa coça no Porto, não faz muito tempo, alimenta graves suspeitas sobre minha pessoa e, no Porto, quase peço permissão ao Sr. Dr. Alto Funcionário da Aduana para dar um pulinho lá fora e tentar conseguir pelo menos uma maconhazinha, a fim de que ele não ficasse tão desalentado com o fato de só haver roupas em minha bagagem. Chateia um pouco, mas não reclamo. É direito deles e a culpa, como já sublinhei aqui, certamente se deve à minha cara de contrabandista congênito.


A gravidade do que ocorre aqui em minha ausência é diretamente proporcional ao tempo que passo lá fora. Uma das minhas mais longas estadas estrangeiras, que levou cerca de dois anos, começou em fevereiro de 64 e, logo em abril, aconteceu aquela confusão toda, durante a qual até em cana quiseram me botar e todos passamos longos anos tratados como imbecis, que não tinham o direito de opinar o que queriam, ver o que queriam ou mesmo ler o que queriam. Felizmente, acordei em tempo para minhas responsabilidades e hoje é muito difícil que aceite ficar fora mais de 15 dias, eis que o trauma pode ser fatal. Uma semana talvez já constitua exagero, embora, desta vez, eu ache que regressei a tempo.


Certamente para a felicidade dele (e para minha, ainda maior), não estive nas mesmas cidades em que o Homem, na Europa. E, além disso meu francês anda um pouco enferrujado, de forma que teria talvez uma certa dificuldade em compreender os grandiosos planos e realizações dele em nosso país. Bem verdade que essa dificuldade existe aqui também, mas aqui a gente já aprendeu a não levar nada dessa conversa a sério. Em francês deve soar bem melhor, até a julgar pela cara dele, quando discursa para platéias estrangeiras na língua local. Mas não se pode evitar inteiramente a televisão e os jornais, de maneira que testemunhei seu garboso périplo pelos lugares que prefere, ou seja, bem longe daqui e quanto mais melhor - isto aqui deve incomodar bastante. Aqui, a semana até que transcorreu sem muitas novidades aparentes. Uma corrupção nova, envolvendo transações agrícolas que não entendemos e em que já se locupletaram impunemente como de hábito, rebeliões em presídios, seqüestros, assaltos, praias fedorentas, o de sempre, que faz parte do nosso carma, por termos aprontado tanto nas encarnações anteriores. Mas isto é somente aparência, porque a primeira notícia que ouvi foi a de que não só deram umas cadeiradas no governador Covas como voltaram a ovacionar o ministro Serra. Confesso que isto começa a me preocupar um pouco. Não só acho que, embora as compreenda, cadeiradas e ovadas não resolvem nossos problemas, como me inquietam outros aspectos, o primeiro dos quais é a circunstância de que há um déficit de cadeiras no Brasil e a elas se podia dar melhor utilidade, em escolas e outros estabelecimentos públicos. Quanto aos ovos, não creio que sua aplicação vá melhorar a situação capilar do ministro Serra, eis que ovo já não é tão bom para o cabelo quanto no meu tempo, como também acredito que estariam melhor aplicados em programas de alimentação popular.


Proponho até que sejam instalados bonecos de pano com a figura do governador Covas, em lugares estratégicos de São Paulo, onde, depois de aplicar a cadeirada sem causar avarias nessas importantes peças de mobiliário, o cadeirador doasse o objeto a alguém carente. Semelhante atitude poderia ser tomada com o que poderia ser chamado, por falta de melhor designação no momento, de “Ovos do Serra”. Não se quebrariam os ovos, mas se faria a doação deles.


Preferivelmente com o comparecimento da galinha responsável e de Sua Excelência , pois, já que, há alguns anos, o ministro Serra, se não me engano, admitiu que nunca tinha visto uma vaca, agora vai ao menos poder ver galinhas e os orifícios de onde saem os projéteis que o alvejam. É sempre educativo.


Mas chato mesmo é que se espalha um certo pânico entre nossos homens públicos e a moda de cadeiras e ovadas, além de outros feitos que também possam vir a entrar em voga, já está gerando algum desconforto, tanto assim que se fala em reforçar as medidas de segurança que cercam os governantes. Prevejo que se criará uma comissão para estudar o assunto e será estabelecida - com verbas sociais, é claro - a Força Especial de Defesa das Otoridades Repelidas (a futuramente temidíssima FEDOR), com a função de escudar nossos líderes contra ovadas, cadeiradas, tortadas, tomatadas e demais atos com que, ao que tudo indica, o povo anseia por mimosear seus governantes. Meio chato viver em um país em que os governantes não podem sair às ruas. Mas, como eu também disse antes, é bom para a democracia e a aproximação com os governantes, pois, estes já de muito tampouco podem sair às ruas, embora por outras razões.


E, finalmente, também na semana de ausência, descobri, com grande espanto, que minhas crônicas e artigos manifestam uma posição de antagonismo ao MST e aos pobres em geral. Isto foi afirmado numa revista aí, metida a esquerdóide, onde trabalham alguns jornalistas decentes, mas também colaboram cretinos e indigentes mentais sortidos. Não me lembro onde escrevi o que disseram que escrevi, porém acho que agora só vou publicar tudo com firma reconhecida. Em pouco tempo de ovadas, todo cuidado é pouco, principalmente com irresponsáveis tirados a intelectuais, cuja vida é um inventário de besteiras e radicalismo chique.


O Globo, 11/06/00