Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Não estamos sós

Não estamos sós

 

A grande mídia e as redes sociais não deram muita bola para o caso, mal o anunciaram. Mas três procuradores da República entraram, no dia 1º de outubro, com uma Ação Pública contra o ministro da Cidadania, Osmar Terra. Os procuradores Antonio do Passo Cabral, Jaime Mitropoulos e Sérgio Gardenghi Suiama alegam censura e improbidade administrativa no recente cancelamento, por parte do ministro, de edital da Ancine para produção de filmes, que o presidente da República havia condenado com argumentos homotransfóbicos.

Os procuradores propõem a ação por considerar que o cancelamento do edital, além de ser um ato grave de censura, é também um irresponsável dispêndio de recursos públicos. Para atender o presidente, que havia declarado que não tinha cabimento fazer filmes com aqueles enredos, o ministro discrimina cidadãos brasileiros, suas ideias e opções pessoais, ferindo as garantias de liberdade de expressão que estão em nossa Constituição.

Mas é também um ato ímprobo, na medida em que o ministério já havia dispendido, do dinheiro público que financiava o concurso, R$ 1.786.067. Por causa de capricho pessoal do poder, gastou-se esses quase um milhão e oitocentos mil reais em vão, deixando ao relento profissional 600 produtores e cineastas que haviam investido tempo, além de recursos artísticos e materiais, para alinhar seus projetos. Tudo isso por causa de quatro títulos de filmes que não haviam agradado ao chefe.

Na opinião dos procuradores, “o relato da testemunha José Henrique Pires confirma a prática de censura e discriminação intencional, motivada por preconceito quanto a orientação sexual e a identidade de gênero”. A testemunha citada não pode ser mais crível, pois era secretário Especial de Cultura, subordinado ao ministro Terra, quando o edital foi abortado. José Henrique Pires se demitiu do cargo que ocupava, por não concordar com tais “filtros”. Diz ele, na ação, que “a Constituição Brasileira garante a liberdade de expressão e que, portanto, não permite que governantes façam juízos pessoais de valor a respeito do mérito de uma obra de arte”. E acrescenta uma advertência oportuna: “Pessoas estão evitando certos temas, estão se censurando por conta das declarações públicas que têm sido feitas”.

“Num estado de direito, nem mesmo os titulares de mandatos eletivos estão acima da lei”, diz o texto da ação. “Nenhuma medida governamental poderá jamais discriminar pessoas em razão de sua raça, cor, crença, origem, sexo ou orientação sexual, com o propósito de lhes negar a oportunidade de acesso a bens ou serviços públicos”. E cita um relatório do ministro Celso de Mello, do STF: “é arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.

Os três procuradores nos advertem na ação: “Notícias de censura e perseguições a campanhas publicitárias, livros, peças de teatro e até mesmo a museus começam a se espalhar pelo país. Direitos fundamentais estão sendo violados, razão pela qual não há outra alternativa senão a pronta e eficaz resposta judicial”. Nós precisamos delas e não estamos sós.

O atual governo foi eleito por uma maioria de votos válidos, é preciso respeitá-lo. Mas, mesmo assim, se considerarmos os que votaram no adversário ou em branco, além dos que se abstiveram, essa maioria se torna uma minoria de eleitores. No entanto, Jair Bolsonaro é o nosso presidente e temos que ouvi-lo como tal. Só que o presidente de um país é o presidente de todos e não apenas dos que o elegeram. É preciso que ele também respeite, ouça e atenda as minorias que não votaram nele. Essa é a base da democracia liberal.

A Justiça é parte desse complexo de poder, mas sem partido. O presidente do STF, Dias Toffoli, por exemplo, foi indicado a ministro pelo ex-presidente Lula. Isso não o impediu de acompanhar o presidente Bolsonaro, no caso de seu filho Flávio. Não vejo mal nisso. Dias Toffoli deve ter-se convencido de que a causa do presidente era a mais justa e a defendeu. A única arma válida na democracia não é o tiro, nem a prisão ou o silêncio compulsório. Mas o convencimento.

O papel fundamental do STF é o de proteger a Constituição, evitar que ela seja desrespeitada. E essa será sempre uma decisão coletiva, do conjunto da Corte.

O Globo, 07/10/2019