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Não adianta, que a maré vem

 

De vez em quando, não posso negar, me divirto bastante vendo na televisão cenas de conflitos entre europeus e, por exemplo, africanos, na França ou na Inglaterra. Africanos muitos dos quais têm uma hipócrita cidadania no país que ora os hostiliza e em cujo povo infundem quase terror. Dirão vocês que não há nada de divertido em testemunhar mais um exemplo da estupidez e do atraso humanos e, claro, sou obrigado a concordar. Mas é que desenvolvi um ângulo especial para enxergar essas coisas e fico curtindo o que chamo de revertério da colonização.


Nenhuns de nós, homens e mulheres, somos coletivamente flor que se cheire. A humanidade é uma espécie, acho eu, fadada a extinção relativamente breve e o máximo que podemos esperar da evolução dos primatas (se houver planeta, se houver evolução) é um novo hominídeo, menos cheio de baixos e torpes instintos como nós, menos animalescamente movido pela ânsia de superar todos os demais, mais sinceramente dedicado, muito mais, ao próximo e à coletividade. Uma criatura que visse o óbvio, já hoje diante de nós, e agisse de acordo com essa visão.


É inescapável que estamos no mesmo barco e que, em última análise, o que é efetivamente bom para o indivíduo é também para a coletividade humana. Quando fazemos filmes sobre invasores extraterrestres, eles são sempre representantes de um planeta entre cujos habitantes não existem as divisões que há entre nós. São todos iguais, vindos de um planeta muito mais desenvolvido e quase sempre maior que a Terra e, aqui, nós nos dividimos por todas as formas imagináveis - o que é pior brigamos e matamos por causa disso. A começar por país, região, cidade, bairro, até rua. Nós nos dividimos de acordo com um número incalculável de critérios, a maior parte dos quais terá sido abolida no planeta superior e que, portanto, assinala o nosso atraso.


Os europeus andaram pintando o diabo pelo mundo afora, como sabemos. Saquearam, mataram, estupraram, humilharam, destruíram, roubaram, tiranizaram, corromperam e cometeram toda espécie de violência imaginável em grande parte do mundo, durante séculos. Agora se revoltam com algumas brandas conseqüências disso. Aqueles que eles invadiram estão invadindo de volta, embora em outros termos. Os europeus gostam muito de achar pitorescos alguns não-europeus, mas não gostam de que os achem pitorescos. E definitivamente abominam, por todos os títulos, até mesmo os seus descendentes diretos, mas nascidos em colônias.


Sim, não é engraçada a violência, que eclodirá ainda por muito tempo e de forma pior. Mas é interessante apreciar a História fazendo justiça tão ironicamente. Podem resolver o que quiserem, podem estrebuchar como quiserem, mas o revertério da colonização prossegue e prosseguirá. A população do mundo cresce cada vez mais, a desproporção de uso dos recursos do planeta entre povos diversos chega a ser difícil de crer, e a onda vem. Quem vai contê-la, como contê-la? Fazem leis, estabelecem cotas, segregam, discriminam e deportam, mas o revertério é como água, que sempre acha uma fresta por onde se esgueirar e logo esguichar - e vai continuar, ninguém escapará.


A Terra - ouço na conferência de um especialista no assunto de nível internacional, assim como já li várias vezes - tem condição de produzir, sem grande dificuldade, alimentos suficientes para pelo menos três vezes a população humana de hoje. Seríamos, com razão, vistos como estúpidos, pela tal civilização superior que nos observava. Estúpidos, não, verdadeiros homens das cavernas, quase tão primitivos em sentimentos quanto um crocodilo e capazes de tudo, apesar de saberem que vão morrer como os outros e isso tudo por aqui é um nanolampejo de tempo.


Porque, como se sabe, a questão dos alimentos é enredada em labirintos tão formidáveis e complexos, todos de origem ou com vinculação econômica, que ninguém na verdade a compreende. Os alimentos têm a ver com todas as atividades econômicas, da mineração à informática. Em última análise, gente passar fome é um dado inescapável do esquema que montamos e que, para incômodo de muitos, é o vigente, sem dar sinais de que quer mudar. Levem em conta a vastíssima indústria de alimentos e a luta por preços os mais lucrativos possíveis, levem em conta governos, soltem o cérebro aí e pensem como isso é tão vasto que talvez nem dê para ser imaginado. É incontestável a observação de que, cada vez que uma pessoa morre de fome, alguém saiu ganhando. Contabilidade macabra, mas real, pois foi a escassez daquele alimento (que em outros lugares do planeta seriam até jogados fora, como, aliás, acontece todos os dias) e seu preço que o tornaram inatingível ao defunto.


Ou seja, como está aí, não pode deixar de haver gente passando fome, faz parte da lógica do sistema. A fome vai matando, mas muitos sobrevivem malnutridos e não irão embora, estão aí. É uma coisa chata, mas inelutável. Eles vão sempre estar aí, não vão desaparecer. Pelo contrário, o revertério da colonização prossegue impávido e a cada aparente derrota acha uma nova via. Se o mundo, por um muito provável acidente de percurso, não acabar, vamos terminar por ter de viver com bem mais simplicidade, menos histéricos. Já pensaram se todo mundo tivesse, igualitariamente, um carro? Não haveria ferro no mundo para tanto carro e muito menos espaço para guardá-los ou circulá-los. É por isso que, enquanto não chega esse tempo, que não deverei testemunhar, eu me divirto com um inglês engolindo ver negros como estrelas do British Team, ou sentindo na pele o que seus ancestrais próximos, ou até ele mesmo, infligiram a outros povos. Só acho é pouco.


O Globo (RJ) 13/7/2008