Eu tenho uma amiga americana de minha geração, D.H., que viveu todas as loucuras dos anos 60 e 70: drogas, sexo, rock’n roll, excessos de todas as maneiras. Embora ainda use suas roupas de hippie, hoje é uma dona de casa em paz com a vida, bem casada há muitos anos, com filhos adultos. Consegue – como todos nós que vivemos este tempo ainda conseguimos – enxergar que o extraordinário reside no caminho das pessoas comuns.
Recentemente, D. estava em uma fila do supermercado com um carrinho cheio de compras, esperando que outra mulher colocasse também uma quantidade gigantesca de produtos na esteira rolante da caixa. Tudo parecia andar devagar aquele dia: a moça ia registrando os itens da cliente anterior sem pressa, e D., depois de colocar a famosa plaquinha “próximo cliente”, começou a esvaziar seu carrinho com toda a calma do mundo.
De repente, a mulher a sua frente se virou, irritadíssima:
- Esta moça não sabe trabalhar, veja como ela é lenta! Se eu fosse você, procurava uma outra fila: já estou aqui há um tempo enorme! Os donos deviam colocar sempre visível: “caixa em treinamento”!
E começou a reclamar em voz alta, para que todo o supermercado escutasse, do péssimo atendimento que estava recebendo.
- Já estou aqui há meia-hora! – gritava.
D. se deu conta que a mulher tinha razão, mas agora já tinha colocado grande parte de suas compras ali, e não valia a pena retirar tudo de novo. Como estava sem pressa, começou a fazer o que normalmente costuma: aproveitar o tempo de espera para rezar um pouco.
E foi aí que se deu conta de algo muito importante: mesmo em uma fila de supermercado, é possível conversar um pouco com Deus. D. me contou que começou a escutar algo como “ não faça como os outros, eles estão lutando contra o Tempo Divino. Continue aí, aproveite, examine o que está acontecendo ao seu redor, olhe para o rosto das outras pessoas, coisas que você quase já não faz mais”.
E assim ela fez. Começou a sentir uma imensa euforia – já não estava apenas em uma fila de supermercado, mas imersa em um mundo cheio de cores, gente que conversava, que comprava, que examinava os produtos, que discutia assuntos irrelevantes, enfim, tudo aquilo que todos os dias nós nos defrontamos, e não entendemos direito que faz parte da própria condição humana. Pela primeira vez estava consciente do lugar, embora já viesse ali há anos fazer suas compras. Notou coisas que nunca havia notado antes.
D. sentia-se cada vez mais eufórica. Finalmente, a mulher da frente pagou a conta blasfemando, e chegou sua vez. Preparou-se para uma longa espera, já que a pobre caixa em treinamento estava assustada com o comportamento da cliente anterior.
Neste momento, aproximou-se o supervisor da loja:
- Está na hora do seu almoço – disse para a caixa. – Debbie irá substituí-la.
Apesar do escândalo, o supervisor não tinha visto nada. Aquilo estava acontecendo por causa do Tempo Divino, que também estabelece horas de almoço para todos. A moça se levantou, e a outra empregada, Debbie, tomou seu lugar. Em pouco menos de cinco minutos, D. já tinha pago e empacotado todas as suas compras. Na saída, cruzou com a cliente irritada.
- Você é uma mulher de sorte! – disse ela.
- Pode ser. Ou também pode ser que a senhora tenha escolhido um comportamento negativo, e tudo demorou mais. Entretanto, eu preferi não participar de sua impaciência, e me diverti. Sabe o que mais? Nunca tinha reparado direito em algo que faz parte da minha realidade. O meu tempo de espera foi também um tempo de encontro com aspectos de minha vida.
Revista O Globo 17/6/2007