Televisão nunca foi minha praia, mas os azares ou ironias do destino me fizeram, um dia, superintendente da teledramaturgia da antiga Rede Manchete.
Numa seara difícil, sem condições de concorrer com a gigante do setor, optamos inicialmente por novelas de época, começando com "Marquesa de Santos" e "Dona Beija", ambas estreladas por Maitê Proença. Deu para o gasto, em algumas noites chegávamos à liderança no horário.
O culpado de tudo era o Adolpho Bloch, que me cobrava uma história que fosse passada numa gafieira da praça Onze, frequentada por ele em seus primeiros tempos de Brasil, e cujo nome estranhíssimo era "Kananga do Japão". Eu sabia vagamente que era uma espécie de flor com um cheiro muito forte, cujo perfume era especialmente usado pelas profissionais da noite. De alguma forma, eu ia levando e adiando o projeto até que entrou no circuito dos cinemas o filme "Cabaré", do Bob Fosse, estrelado pela Liza Minelli. Fui vê-lo e no dia seguinte levei o Adolpho para assisti-lo. "Era isso que eu queria!" -dizia-me ele durante toda a exibição.
Evidente que não tínhamos equipamento, recursos técnicos e financeiros do filme, mas descobrimos que podíamos contar a história de um tempo, tal como no filme, vista do palco de um cabaré de Berlim nos inícios do nazismo e já com algumas de suas consequências. E mais ou menos no tempo histórico do filme de Bob Fosse, escolhi a década de 30, mais exatamente o período de 1929 (craque da Bolsa de Nova York que provocou, entre outros desastres, a desvalorização do nosso café), a 1939, com o começo da Segunda Guerra Mundial, Leônidas e Domingos da Guia nos gramados, Carmem Miranda indo para Hollywood e Ary Barroso compondo "Aquarela do Brasil".
Entre as duas datas, as revoluções de 30 e 32, os movimentos de 35 (comunista) e 38 (integralista), o caso de Olga Prestes entregue à Gestapo de Hitler, os começos do rádio entre nós, a repressão do DIP (no rádio e na imprensa) e da Polícia Especial (nas ruas), a época de ouro da música popular brasileira, seus grandes intérpretes e sucessos, o golpe de estado de 1937, a era de Vargas, os começos do cinema nacional.
Evidente que o pano de fundo histórico, tal como no filme de Bob Fosse, não impediria um dramalhão sentimental em primeiro plano, na base de qualquer telenovela que até hoje se faz, e cujo desenvolvimento ficou a cargo de Wilson Aguiar Filho, com Christiane Torloni encabeçando o elenco.
Como o ibope subiu, chegando a superar em algumas noites a programação da própria Globo, pediram-me que desse continuidade ao esquema e partisse para a década seguinte, os anos 40, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a ida dos pracinhas brasileiros para lutar na Itália, o fechamento dos cassinos, o fim da ditadura de Vargas, em 1945, a Copa do Mundo de 1950 perdida no Maracanã, o retorno democrático de Vargas ao poder.
Escolhi um nome bem cafona para a série, "Na Carícia de um Beijo", verso de um grande sucesso de Francisco Alves que era, disparado, o maior nome do rádio brasileiro e todas as noites cantava o "Boa Noite", de José Maria Abreu e Francisco Matoso. Muita gente só ia dormir depois de ouvir o boa-noite do Rei da Voz.
Problemas de produção, cenas de guerra na Itália com os atores do elenco, sem apelar para os jornais cinematográficos da época, o projeto gorou pelo alto custo e até mesmo por embaraços da censura, que só acabaria anos depois, com o fim dos anos de chumbo. Temos hoje, em atividade, diversos cronistas de estilo envolvente e sensibilidade afetiva pelo nosso passado recente, cito a esmo o Ruy Castro, o Artur Xexéo, o Zuenir Ventura, o Joaquim Ferreira dos Santos.
Evidente que eles não precisam do palpite e muito menos da inspiração brega de um escriba que tem lugar garantido no baixo clero das letras. Mas, pessoalmente, e como amigo e admirador deles, gostaria de poder apreciar alguma coisa parecida com "a carícia de um beijo que ficou no desejo", antes que me dessem o boa-noite final.
Folha de São Paulo, 23/9/2011