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Na cadeira do presidente

 

Lula vai ao poder com que jogo? Impor logo a guinada ou fazê-lo na superprudência das transições? Todo governo dispõe hoje do repertório de previsões sobre o que acarreta logo o que decida o presidente, no vespeiro da complexidade da iniciativa política.


Sobretudo quando se trata da chegada ao poder da legenda diferente. Sentar-se no Planalto é imprensar-se neste jogo de lances e contramedidas, de ações e repulsões, de contabilização dos paradoxos, ou dos efeitos de preempção com que a nova hegemonia se substituiu os velhos condicionamentos lineares de dependência.


Não é outro o quadro da globalização, múltiplo nos condicionamentos e deixando um governo das periferias com, praticamente, um resíduo de decisão nacional. Esta limitação inicial condiciona, previamente, a visão presidencial e lhe desenha o cenário onde o país cativo esgrima a ação política. Ou melhor, vive da antecipação inescapável dos seus gestos. E até pode, no prodígio da última simulação, vê-los, ainda, como decisão soberana, ao invés de mera seqüência ao deserto de alternativas em que se afunilou o script do mercado e suas vantagens unilateralmente exigíveis.


Nesse quadro externo não fugirá um novel governo ao que lhe comandam os protocolos da sobrevivência internacional, como o atestado de "boa fé" e de convivência tolerável. Neste libreto aguardam-se a aceleração das exportações - e, pois, maior envolvimento ainda no mercado lá fora - e as reformas fiscais, a combater a rotina da subcaptação tributária, e a tolerância dos controles no paradoxo entre a evasão fiscal crônica e a sobretaxação das classes médias e dos setores condenados ao tributo dos proventos salariais.


O plus que traz o PT a esta conjuntura parquíssima, do quase nada a mudar - e que já tornou insípida a leitura e o confronto de qualquer programa de candidatos à Presidência -, nasce desta vantagem específica do partido de Lula.


Envolvendo uma mudança de quadros governamentais, removerá o limo da tolerância com a acomodação instalada, senão a societas sceleris, entre o infrator e o seu fiscal, que deixa o Brasil, pela declaração do Secretário tucano da Receita Federal, Everardo Maciel, com rombo tributário idêntico à quarta parte do PNB brasileiro.


Não basta citar o quanto a arrecadação cresceu, objetivamente, de quase um terço, quando chegaram a Palácio, governadores e prefeitos petistas, na primeira arremetida do partido ao poder.


O trunfo se multiplica pela comprovação objetiva da incorruptibilidade da legenda, virgem, o partido, de denúncias no Congresso ou em Executivos, já entradas em largas rotinas administrativas. Esta presunção, nascida de mandatos corretos e insuspeitos, levou tantos contingentes da classe média em 2002, a sufragar Lula à Presidência.


O país petista no Planalto exigirá, de logo, aos olhos de fora, de toda forma, o contraste com o Brasil do ceticismo acomodado, protagonizando a ruptura e a fundação de um estilo de governo. É respondendo à fome do desempenho intrinsecamente inovador, que se começa a saciar a cobrança do que mudou, e do quanto tempo se está a sua espera.


No gesto certo não se requeira o espetáculo monumental, mas o lance que indica o corte, às vezes, até presente num nada de confronto. Mas que seja exemplificação ou sinal inequívoco por onde se cumpre e premia o código da chegada distinta ao poder.


No elenco dos libretos mais fáceis, se encontra a punição de corruptos, de forma a que uma denúncia fundada, em verdade, se investigue, ao mesmo tempo no respeito da legalidade dos processos, como da sua efetiva chegada a termo, com as sentenças condenatórias, se for o caso, e sua execução. No quadro de quase cinismo com que o Brasil dos donos de poder defronta a nação que sobe ao governo, conta-se com a desmemória dos processos, ou a falta de isonomia na aplicação das penas.


O cerimonial de austeridade dos primeiros dias dos governos tradicionais não perdura, tal como as prometidas reuniões coletivas de Ministério não passam do primeiro e bombástico encontro, nas madrugadas dos dias inaugurais. As mordomias acumulam os caminhos secretos para a fruição silenciosa dos cargos, vistos como benesses dos ganhadores do poder. Numa tradição contrária, o PT sabe que a permanência da disciplina e da concepção do servir na função pública não impacta, mas deixa as equipes de governo no marco de uma rotina da mobilização.


O assembleísmo e o enraizamento da decisão colegial, específicos do partido, por mais que alonguem desfechos, abolem as práticas de voto por liderança, ou das delegações habituais de mando na cadeia do Executivo, ou nas comissões do Congresso, por onde se refina e perpetua um sistema de elites e donos do poder. É nesta habituação contra o jogo implícito, cada vez mais concentracionário, da prática de decisão e de comando que se delineia o proclamado jeito de governar do PT.


Se a transição antecipa o estilo de governo, Palocci já demonstrou que o regime vai aproveitar o que de bom já existe nas conquistas de FH. Não há volta ao marco-zero. O que começa a diferença para ficar é a reiteração da enormidade da dívida social. Não se a vê como risco do modelo neoliberal nem se o resolve na engrenagem do mercado-rei. A prioridade vai à mesa do presidente, e perdura a despeito de qualquer prudência da dita conjuntura, frente às certezas da vontade-plebiscito do 27 de outubro.




Jornal do Commercio (RJ) 22/11/2002

Jornal do Commercio (RJ), 22/11/2002