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A música como bálsamo

 

‘Nós estávamos precisando”, exclamou uma senhora depois dos “Dois concertos”, de Nelson Freire, no domingo, num superlotado Teatro Municipal. Na véspera, eu ouvira mais ou menos o mesmo depois do musical “Minha vida daria um bolero”, no Sesc Ginástico. Eram desabafos de quem não aguenta mais nosso cotidiano de guerra civil e de histórias enfadonhas de busca de vices ou de enredos criminosos como o desse Dr. Bumbum, que, se não bastassem todas as trapaças, é suspeito, como Édipo, de ter matado o namorado da mãe.

Embora de gêneros diferentes, uma popular e a outra, erudita, era a música funcionando como bálsamo. No caso do bolero, me empolguei tanto que, acredite, abri o peito cantando junto com o público “Besame, besame mucho/ Como si fuera esta noche la última vez” ou “Es la historia de un amor/ Como no hay otro igual/ Que me hizo comprender/ Todo el bien, todo el mal” ou então, imitando o sotaque de Nat King Cole, “Siempre que te pregunto/ Se algun amor escondes/ Tú siempre me respondes/ Quizás, quizás, quizás”.

Eu mesmo só me dei conta do meu desempenho quando as pessoas, ainda surpresas, vieram comentar depois do espetáculo: “Você cantou a noite toda!”. Ou seja, fiz agora o que 70 anos atrás tinha vergonha de fazer.

No dia seguinte — para tranquilidade dos amantes da música clássica — não tentei acompanhar Nelson Freire tocando Chopin e Brahms, até porque eram concertos para piano e orquestra, regida por sinal pelo maestro Marcelo Lehninger, indicado regente-assistente da Boston Symphony Orchestra por James Levine, a quem costuma substituir.

Permaneci as mais de duas horas em êxtase, com os olhos fixos no piano, me perguntando como é possível concentrar nos dedos tanto virtuosismo e transmitir tanta emoção estética. Para um reles mortal como eu, trata-se de um inexplicável milagre.

O Brasil, além dos maiores craques que utilizam os pés, tem também um gênio das mãos como Nelson Freire, que aos 12 anos já ganhava seu primeiro troféu internacional e aos 23 estreava em NY com os aplausos da revista “Time”, que o apontava como “um dos maiores pianistas dessa ou de qualquer outra geração”. E que hoje, aos 74 anos, continua consagrado em cerca de 70 países com os principais prêmios da categoria.

No final, a plateia de pé e aos gritos pediu sua volta umas quatro vezes. Como foi dito no início, “nós estávamos precisando”. Estávamos, estamos e estaremos sempre precisando de Nelson Freire.

O Globo, 25/07/2018