Aos 22 anos, Aparecida Menezes era uma jovem mais feia do que bonita, mas todos concordavam que ainda valia a pena. Tanto valia a pena que um coletor federal de 62 anos, confessando que perdera a cabeça, deixou mulher e prole em Madureira e fugiu com Aparecida para Cabo Frio, que era então uma cidade quase deserta.
Tudo correria bem para o coletor federal se a polícia, também federal, não se metesse. Houve um rombo no Ministério da Fazenda e Aparecida amanheceu um dia sem o coletor, que lhe deixara um aviso que era igualmente um conselho: "Vire-se".
Aparecida virou-se. Tanto se virou que acabou dando e recebendo passes numa tenda em São Cristóvão, bairro afastado do centro, onde teve sucesso até a chegada de um médium que tinha a fama de ter ressuscitado um defunto em Cantagalo, terra de Euclydes da Cunha.
Recebendo o espírito do autor de "Os Sertões", o médium tinha a fama de ter dito a um defunto recente "Levanta-te e anda!", e o defunto levantou, andou e deu-lhe um boi gordo de presente.
Com a chegada dele, Aparecida perdeu quase todos os clientes, pois se limitava a receber o Caboclo Ventania, que estava longe da luminosidade de Euclydes da Cunha. O espírito do escritor era capaz de tudo. Além de perda de tempo, seria burrice insistir num duelo entre o Caboclo Ventania e Euclydes da Cunha.
Ventania nada fizera de notável em vida. Nem mesmo depois de morto. Por intermédio de Aparecida, limitava-se a embaralhar o caminho dos desafetos de quem o procurava e, em caso de adultério, que era o forte de Ventania, levava vantagem sobre o espírito de Euclydes da Cunha: evitava soluções cruentas, tornando impotentes os machos e dando sífilis nas fêmeas.
Aparecida decidiu enfrentá-lo. Havia em Itaboraí a mais eficiente macumbeira do litoral sudeste, conhecida como Mãe-de-Todas, uma ex-prostituta que antes usava o codinome de Mãe-das-Fodas. Ela atendia a casos desesperados, receitava mandingas igualmente desesperadas, embora as mandingas, em geral, sejam desesperadas por definição e necessidade.
Arranjou carona num caminhão que levava sal para Niterói e foi se aconselhar com Mãe-de-Todas, a qual não lhe pediu explicações nem Maria Aparecida as deu. Ordenou: "Dispa-se!".
Aparecida despiu-se. A velha levou-a para um quarto onde havia a metade de um barril de chope servindo de tina. De uma prateleira, ela apanhou umas ervas ressequidas. De várias chaleiras que fumegavam num braseiro, despejou a água quase fervendo em cima das ervas, enchendo metade da tina. Mandou que Aparecida entrasse, que suportasse a água até o limite de suas carnes, que estavam frias de pavor.
Com uma cuia que, tal como a tina, era metade de um objeto anterior, no caso, uma lata de queijo do reino, deu um banho em Aparecida.
A velha pronunciou palavras estranhas durante a operação, das quais Aparecida só entendia a expressão "dominus vobiscum", que ela conhecia das missas que freqüentava, sempre em caráter profissional. Aprendera que misturar religiões era eficiente, seus clientes eram católicos, apostólicos e romanos, embora nenhum deles soubesse o que era isso.
Findo o banho, Aparecida reparou que a água ficara escura. "Beba!", ordenou Mãe-de-Todas.
Ofereceu a cuia de queijo do reino para que ela bebesse. Aparecida custou a obedecer, mas a velha garantiu que a água absorvera todo o mal que havia no corpo e na alma dela. A peçonha estava toda ali, concentrada. Purificado pelo ar de fora, o mal se transformava em bem e ela podia recuperar um corpo sadio e uma alma redimida.
- Agora, volte correndo para casa. Daqui a dez horas, você terá um sono profundo. Amanhã, ali pelo meio-dia, você despertará e saberá o que deve fazer. Mais não digo nem preciso.
Aparecida arranjou carona de volta a Cabo Frio, chegou em casa, deitou-se e esperou pelos acontecimentos. Dez horas depois, já no dia seguinte, ela despertou. Só que não estava na cama, mas dentro de um caixão, com quatro velas acesas em torno, flores roxas cobrindo-lhe o corpo vestido de branco. Estranhou aquilo tudo, as velas, o caixão.
Lembrava-se de que, ao dormir, estava com uma calça de veludo cotelê, cor de vinho, dada por uma cliente que viera de Ipanema. Quem a desnudara e a vestira com aquela camisola branca que parecia roupa de um anjinho de procissão?
Houve inicialmente horror, depois pasmo, finalmente devoção, mais ou menos nessa ordem. A confusão foi geral, gente correndo, gritando, por fim quietada, diante da realidade: Aparecida ressurgira dos mortos.
A primeira coisa de que ela se lembrou foi o aviso de Mãe-de-Todas, "você saberá o que fazer". E Aparecida fez. Ainda dentro do caixão, abriu os braços como um padre nas missas e disse: "Dominus vobiscum".
Mais não precisava fazer.
- Milagre! Milagre!, gritaram todos.
Folha de São Paulo (São Paulo) 15/07/2005