Há controvérsias, na história brasileira, sobre o número certo de Brancas Dias com que contamos. A versão mais verossímil é a do Recife, nascida em Lisboa. Teve 11 filhos. Embarcou para Pernambuco, ao encontro do seu marido Diogo. Viveu dias ditosos e infelizes, no engenho do Camaragibe. A outra Branca que pode ter existido é a da Paraíba, que teria sido uma heroína judia, vítima da Inquisição.
Para a pesquisadora e escritora Míriam Halfim, a escolha ficou com a primeira delas - e assim construiu uma bela peça de teatro, com o título "Senhora de Engenho, Entre a Cruz e a Torá", que ganhou o primeiro lugar do Prêmio Literário da cidade do Recife, em 2004.
Se investido de crítico, não há o que retocar no texto de Míriam. As cenas são muito bem conduzidas, inclusive com inteligentes soluções de luz. Como se fosse o trabalho de uma veterana, nessa difícil arte.
A figura forte do enredo é mesmo Branca Dias, desde que chegou em Pernambuco, ao encontro do marido Diogo. Este, sofrendo as agruras da solidão, enquanto esperava a esposa, acabou namorando Madalena e com ela teve a filha Briolanja, de temperamento extremamente difícil. O convívio das duas famílias de Diogo Fernandes, no engenho, não é dos mais agradáveis, pois passam a ser comuns as cenas de inveja e ódio, tendo como causa as origens religiosas de uma e outra. Branca Dias, extremamente judia, guardando com a filha Brites uma Torá (doutrina judaica) preciosa, enquanto de outro lado a predominância era da tradição católica, própria das cristãs velhas. Estas não precisavam disfarçar a sua crença; aquelas deveriam fingir-se de cristãs novas, enquanto na sua alma havia impregnada toda a sensação de um judaísmo forte e sempre presente.
O desenrolar da peça é enriquecido pela presença de uma grande figura da nossa história, Bento Teixeira, primeiro poeta da colônia. O mestre-escola judeu sofreu inúmeras adversidades, algumas provocadas pelo infeliz casamento com a desagradável Felipa, que chegou a desdenhar por muitas vezes da sua condição judaica. Ele encontrava amparo na casa de Branca Dias e participava das suas cerimônias religiosas, para comemorar secretamente as grandes datas. Ao lado disso, foi peça-chave quando Branca tomou a corajosa decisão de tornar-se também mestre-escola, para ajudar o marido a recuperar o engenho, depois de destruído por índios caetés.
Foi justamente nessa quadra que se sentiu a imensa força da heroína, nos cinco anos em que fez da educação a sua principal atividade. Já havia experimentado sua vocação com o próprio filho Manuel Alonso, que nascera sem os braços. Aprendeu a escrever com o pé, com os ensinamentos ministrados pela própria mãe.
Branca Dias fora presa em Lisboa, depois obrigada ao uso forçado do sambenito. Quando chegou ao Brasil estava cheia de esperança: "Seremos felizes aqui, bem longe e a salvo da asquerosa e odienta Inquisição." Ela se deixara prender para dar a oportunidade ao marido de fugir para o Brasil e assim se ver a salvo. Até que ela pudesse se juntar a ele novamente.
Mulher iluminada
Nas alternativas propostas pelas várias cenas ficou patente o amor da família pelo engenho de Camaragibe, onde foram vividas passagens de fé, amor e milagre, com a claríssima presença de Branca Dias como mulher iluminada. A síntese está nessa frase, por ela proferida enquanto olhava para fora: "O Camaragibe é mesmo uma bela propriedade. Aqui vivemos tantas coisas boas, tantas alegrias; algumas tristezas também. Muitas, pensando bem. Mas eu me recuso a dar peso maior às más experiências. Acho que no fundo, apesar de tudo, sou uma otimista. Não será nada fácil viver sem o perfume do jardim, do pomar, desta terra maravilhosa." Desde que, é claro, não fosse impedida de professar a sua fé secular.
A mais convicta das filhas de Branca Dias foi Brites, fisicamente lesionada, mas de um caráter excepcional. Dizia ela que a única inveja desculpável é a do saber, "porque faz a gente querer melhorar sempre." Viveu para a religião, foi guardiã da Torá, e bem mais velha foi denunciada, presa e embarcada para Lisboa, onde saiu em auto-de-fé, condenada a cárcere e uso do sambenito perpétuo. A tradição reza que morreu na fogueira, enquanto Bento Teixeira, também denunciado, morreu na prisão em Lisboa. Branca Dias foi denunciada, mas morreu antes de se instalar a Inquisição em Pernambuco, embora outra versão a faça vítima também da fogueira.
De todo modo, a escritora Míriam Halfim, de forma competente, reviveu instantes de sofrimento vividos pela comunidade judaica no Brasil. Realizou trabalho de grande valor histórico e literário.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 18/04/2005