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A morte de Jorginho Ginle e a eutanásia

 

Tema polêmico, que envolve em parcelas iguais ciência e religião, até agora a eutanásia está longe de ser aceita placidamente pelas sociedades civilizadas. Não deixa de ser um assassinato, de contrariar o mandamento inscrito na fronte de todos nós: não matarás! Mas sabemos que a morte é inevitável, a ciência prolonga e melhora a vida, mas todos os recursos tecnológicos e científicos têm um limite.


Resta a questão: é justo deixar um ser humano, ou mesmo um animal, sofrer além do tributo que devemos à carne, em muitos casos perdendo a dignidade a que temos direito, sobretudo no momento final da existência?


Não tenho autoridade científica nem religiosa para dar uma opinião, mas lembro as restrições feitas pela ciência e pela religião à cremação dos corpos. Hoje, a legislação de quase todos os países permite a cremação, desde que autorizada pelo próprio, ainda em sua fase de lucidez comprovada. Tornou-se um ato burocrático e legal, como um testamento, que deve ser respeitado pela família e pelo Estado.


No caso da eutanásia, bastaria uma declaração formal do paciente? Evidente que não. Seria necessário um critério rigoroso para determinar o estado terminal de um doente, suas chances de sobrevivência digna e tanto quanto possível prazerosa.


A violência da dor nem sempre é sinal de morte iminente. Um pedido, diria melhor, o grito de um doente implorando que o matem não pode ser o critério legal e científico para determinar a morte induzida. Qualquer um, submetido a uma dor insuportável, pede que o matem. A maioria dos casos de dor extrema pode ser contornada pela medicação; o doente vence a luta e volta à vida normalmente.


Mas há casos em que, controladas a dor e a angústia pela sedação química, o paciente mergulha num coma irreversível e inútil. Aí então seria o caso de, havendo autorização anterior e lúcida do moribundo, e provada tecnicamente a inevitabilidade do fim, poupar o doente, a família, os médicos e os enfermeiros de um processo lento, doloroso e caro.


Do ponto de vista religioso, o problema resulta mais simples, tal como o da cremação, que é proibida por muitos credos. Somos livres para termos ou não uma determinada religião, adotarmos ou não um conjunto de práticas coerentes com os princípios básicos de nossa fé. Maometanos e judeus ortodoxos, por exemplo, não comem a carne de certos animais, por higiene ou penitência. Uma questão em aberto, que não envolve uma questão moral em si.


A eutanásia é considerada uma violação da vontade divina. Em todas as religiões, Deus é o senhor da vida e da morte. Para aqueles que não acreditam num ser supremo, a questão se reduz à escala humana, onde os valores pretendidos são a dignidade moral e corporal e, evidentemente, a busca de uma solução para a dor.


Nesse particular, tivemos há pouco um tipo de eutanásia civilizada, incruenta, além de qualquer consideração moral, cívica ou religiosa. Jorginho Guinle, de 88 anos, adepto da boa vida integral, que se vangloriava de nunca ter trabalhado, foi internado em estado grave. Um aneurisma na aorta o ameaçava, os médicos perceberam que somente uma cirurgia de alto risco poderia eliminar o problema. As chances de sobrevivência eram limitadas, coisa de 10%, e, mesmo assim, a qualidade de vida resultante seria precária, para não dizer péssima.


No uso de sua lucidez, embora sabendo-se terminal, Jorginho assinou um documento responsabilizando-se pela alta hospitalar e foi para casa. Como não tinha mais casa, mas morava no hotel que pertencera à sua família, ocupou uma suíte cuja varanda dava para a famosa piscina do Copacabana, em torno da qual vivera praticamente a vida inteira.


Comeu o que quis, pediu a sobremesa predileta e morreu. Rigorosamente, cometeu um suicídio, ou melhor, praticou uma forma de eutanásia legal, sem cúmplices, sem dar trabalho a ninguém.


Outro que cometeu uma forma "light" de eutanásia foi Darcy Ribeiro, vítima de um câncer quase que histórico. Ele não assinou documento nenhum, apenas fugiu de um hospital e foi para Maricá, onde tinha uma casa de praia. No caminho, parou num desses botecos de beira de estrada e entrou num caldo de cana com pastéis, daqueles que mataram o guarda. Não morreu logo, mas deu o recado vital: queria viver para aproveitar a vida, e não para constar entre os vivos, no qual sempre fora vivíssimo.


Os dois casos, ambos de nosso tempo, um dia talvez sejam considerados heróicos. E, citando-os, não preciso lembrar que cada um de nós deve ter conhecimento de episódios parecidos, pessoas que procuraram morrer civilizadamente, alguns com a ajuda de parentes e amigos, outros apelando para uma forma qualquer de suicídio, recusando-se ao tratamento terminal, ou mesmo precipitando o fim com o aumento da dosagem dos remédios ou o afastamento da complicada parafernália hospitalar.


Durante séculos, a humanidade procurou o elixir da vida, a juventude eterna. Alguns venderam a alma, como o dr. Fausto. Outros se mataram antes do tempo, por isso ou aquilo. De qualquer forma, o encontro com o fim, meta final que enfrentaremos mais cedo ou mais tarde, nos remete àquela frase de santo Agostinho: a vida não é mortal. A morte é que é vital.


 


Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em 19/03/2004

Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em, 19/03/2004