Recebi da jornalista Anna Lee, com quem venho publicando alguns livros de literatura infanto-juvenil por diversas editoras interessadas no gênero, um comentário sobre o filme "Dossiê Jango" atualmente em cartaz. Pesquisando artigos meus publicados na revista "Manchete", logo após as mortes de Jango, JK e Carlos Lacerda, que formaram a Frente Ampla contra a ditadura militar, e, mais do que o discurso do deputado Márcio Moreira Alves, foi a causa principal do AI-5 de 13 de dezembro de 1964, Anna Lee percebeu que havia material suficiente para um livro, ideia prontamente aceita pela editora Objetiva, que financiou os custos de suas numerosas pesquisas.
Transcrevo o seu texto, que aborda mais um caso de cobertura documental sem o necessário crédito às primeiras fontes que trataram do mesmo assunto:
"No último sábado, fui assistir ao documentário 'Dossiê Jango'. Como você sabe, qualquer assunto sobre o ex-presidente João Goulart é de meu interesse, afinal, o tema se tornou caro pra mim desde que fizemos em parceria o livro 'O Beijo da Morte', publicado em 2003 pela Objetiva, e com o qual fomos ganhadores de um dos prêmios Jabuti de reportagem em 2004. Durante um ano, como também é de seu conhecimento, fiz sucessivas viagens para Porto Alegre, São Borja e cidades do Uruguai e da Argentina onde Jango ficou exilado de 1964 até sua morte, em 6 de dezembro de 1976, em busca de personagens e documentos que nos ajudassem a sustentar a hipótese que levantamos no livro, ou seja, que João Goulart teria sido vítima da Operação Condor, que eliminou líderes políticos do Cone Sul, opositores das Ditaduras Militares instaladas, nesta época, em países da América do Sul (Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia).
Na minha dissertação de mestrado, feita na PUC-RJ, 'Umas Histórias Outras de João Goulart - A Construção de um Personagem no Teatro da Política Brasileira', defendida em 2006, voltei a tratar do assunto, inclusive, utilizando documentos do Habeas Data de Jango, que nos foi cedido por seu filho, João Vicente Goulart, e que não foram publicados em 'O Beijo da Morte'.
Imaginava encontrar em 'Dossiê Jango' algo semelhante ao filme 'Jango' (1984), de Silvio Tendler, que retrata a trajetória política de João Goulart, com uma ou outra novidade, já que há um espaço de 29 anos entre os dois filmes, e neste meio tempo houve a Comissão da Verdade, para investigar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil por agentes do Estado, e a questão do exílio e da morte de Jango foi tratado por esta comissão.
No entanto, fiquei bastante surpresa com o conteúdo de 'Dossiê Jango'. O documentário trata exatamente do mesmo tema de 'O Beijo da Morte', entrevistando os mesmos personagens, baseando-se nos mesmos documentos, fazendo o mesmo percurso de nossa apuração, em relação à morte de Jango. Nenhum crédito nos foi dado. Nem quando João Vicente, num tête-à tête com o uruguaio Mario Neira Barreiro, que diz ter participado da operação que vigiou e matou Jango no exílio, citou nominalmente nós dois, dizendo que sabia que 'Anna Lee e Cony' o tinham entrevistado no presídio de segurança máxima de Charqueadas, município vizinho a Porto Alegre. Nenhum crédito também foi dado ao nosso livro, quando no documentário aparece uma entrevista sua falando sobre as circunstâncias da morte de Jango, e que Leonel Brizola havia enviado um recado a ele recomendando que não dormisse duas noites seguidas no mesmo lugar.
Mais surpresa ainda fiquei quando o documentário deixa de tratar apenas do assunto ao qual seu título remete, e passa a abordar não somente a morte de João Goulart, mas também a de Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, trabalhando com a mesma hipótese que levantamos em 'O Beijo da Morte', ou seja, que estes três líderes políticos brasileiros morreram de forma suspeita no período de nove meses (JK, em agosto de 1976; Jango, em dezembro de 1976; Lacerda, em maio de 1977), vítimas da Operação Condor no Cone Sul. Mais uma vez não nos foi dado crédito.
Para completar minha surpresa, na lista de agradecimentos no final de 'Dossiê Jango', consta meu nome, sendo que jamais fui procurada ou falei com o autor deste documentário nem com ninguém de sua equipe."
Folha de S. Paulo, 19/7/2013