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Momento da verdade

 

Mais um Carnaval, estamos aí, quer dizer, eu não estou com nada e em nada, muito menos nesse "aí" genérico e abstrato. Na verdade, se todos estão aí, eu prefiro estar ali e vice-versa. O Carnaval não me repugna, como a tantos outros, mas não me deslumbra.

Já fiz esforço para gostar, apelei para complicadas razões não deu. Do ponto de vista pessoal, guardo minhas lembranças, boas algumas, outras detestáveis, mas nenhuma que tenha entrado fundo e marcado um momento, definido uma emoção. Sim, houve um fato capital, que determinou tudo: foi num antigo baile aqui no Rio, num clube que atendia pelo nome de "High Life".

Eu havia saído do seminário há pouco e no primeiro Carnaval decidi não brincar. Embora usasse roupas leigas, eu ainda sentia o peso da batina sobre a minha carne, o cheiro do incenso em meus cabelos.

Passei o primeiro Carnaval numa praia, com minha mãe e irmãos, e da folia mesmo, só vi alguns blocos de sujo. Mas no terceiro ou quarto Carnaval, naquilo que lá no seminário a gente chamava de "mundo", topei o convite de uma namorada, fui parar no tal baile.

Por sinal, um baile famoso na época. Diziam que ali, de ano para ano, valia tudo e valia cada vez mais. No fundo, sabia não valer nada. Cometia séria concessão ao Carnaval indo a um baile, mas não entregava o ouro ao bandido: recusei qualquer tipo de fantasia. Meti-me numas calças brancas, camisa de seda branca.

No meio da folia, agarrado na namorada, deparei-me com enorme espelho, que ia do teto ao chão. E lá no espelho, vi um camarada com uma cara sórdida, olhos injetados de álcool e suor, repelente, medonho. Incomodado, quis tirar satisfação. Ele fez o mesmo. Descobri que ele era eu, eu era ele.

Culpa do espelho, do Carnaval e da má argila da qual são feitos homens, demônios e foliões.

Folha de S. Paulo(RJ), 2/3/2014