Por não saber bem do que se trata, já que existe uma infinidade de culturas e subculturas muito diferentes entre si, mas que podem ser chamadas de orientais, sempre procuro evitar contatos mais aprofundados com a Misteriosa Sabedoria Oriental, particularmente em certas circunstâncias como, por exemplo, nas conferências que alguém sempre faz, quando se vai a um restaurante japonês. De modo geral, explica-se que a Misteriosa Sabedoria Oriental chegou à conclusão de que peixe cru é mais sadio por isso, por aquilo e por aquilo mais. Na verdade, a sabedoria oriental envolvida nisso não tem nada de misteriosa. Os japoneses inventaram maneiras atraentes de comer peixe, legumes e algas crus porque moravam e moram num arquipélago sem combustível, onde até lenha sempre foi escassa. Aí, claro, o pessoal aprendeu a comer cru e elogiar, é natural e compreensível. (Sei que tem gente que encara essa afirmação como sacrílega; cartas indignadas para o editor, por caridade.)
O setor indiano dessa grande sabedoria ? que também é variadíssimo, mas os aficionados esquecem isto ? nunca cessou de fornecer farto material, sempre superior ao que temos por aqui. Lembro um amigo maledicente que alega incapacidade para discernir o que há de superior em viver de uma dieta constituída de bosta de vaca guisada e salada de manga verde, sentado numa cadeira de pregos, na companhia de duas cobras bailarinas. Maledicência, claro, para não falar na exploração de estereótipos sem fundamento na realidade. Mas eram mais ou menos esses os ideais de algumas pessoas fascinadas pela versão indiana da Misteriosa Sabedoria Oriental com quem já conversei.
Agora, porém, creio que devo dar a mão à palmatória. A última novidade da Índia está tendo merecido destaque no noticiário. Trata-se, como vocês devem ter visto nos jornais ou na televisão, de um senhor de 83 anos que afirma estar sem comer ou beber nada há mais de 70. Os médicos que o estudam não têm elementos para contestá-lo e com certeza já deve estar havendo reuniões preliminares de pelo menos uns três grupos de interessados, para montar no Brasil centros destinados a aplicar as descobertas recém-divulgadas. Tenho até uma sugestão para o nome de uma das cadeias de jejum público que deverão surgir. Tiro o nome de “fast food”. Como “fast”, além de rápido, também quer dizer “jejum” em inglês, sugiro que a primeira cadeia se chame “Fast Fast” ? quero somente um porcentual modesto do faturamento. O mercado é amplo e, durante os quatro meses que durar a moda, imagino que teremos botecos transformados em salões de jejum, onde os iniciados poderão não comer nada em ambientes sofisticados e propícios à meditação, assim como não beber nada sentados a mesas em que apenas a conta será material. Engana-se quem duvida, bobeia quem não investir.
Em Itaparica, contudo, a novidade não fez muito sucesso. Na habitual discussão do Bar de Espanha, ela até foi recebida com acentuado ceticismo da parte dos mais velhos. Ainda persistem recordações dos tempos em que havia pequenos circos e alguns deles visitavam Itaparica. É dessa época a controvertida figura de Rama Shanut, o faquir de um circo que passou uma temporada na ilha. (O faquir não era a principal atração do circo. A principal atração era a rumbeira Chiquita Salguero, em cuja homenagem abro estes parênteses, na verdade uma sergipaninha muito simpática chamada Pureza, a cuja lembrança vários velhos corações ilhéus palpitam.) Rama Shanut não deitava em pregos, mas ficava sem comer, numa gaiola com quatro ou cinco jiboiazinhas. Sob a alcunha popular de Charuto, era bastante festejado, mas foi obrigado a retirar-se da ilha com alguma urgência, quando se constatou que, apesar de cobrar quarenta centavos por cabeça a quem queria vê-lo jejuar, ele engordou seis quilos, depois de três meses de inanição.
Além disso, a fome nunca foi bem um problema aqui na ilha, porque sempre se pode dar um jeito de catar a proteína nos mangues ou nos bancos de areia expostos pela vazante. E há certos refinamentos, inspirados, como os da sabedoria japonesa, pela aspereza das condições vigentes. Assim, muitos dos que anseiam por um lanchinho ou café, mas no momento não dispõem de recursos, recorrem à jacuba (também denominada maria lígia, nunca descobri por quê). Para fazer jacuba, prepara-se um “café” de chicória seca, mistura-se com um pedaço de rapadura para adoçar, acrescenta-se farinha, mexe-se bem e bebe-se rápido, para não dar tempo de a farinha se depositar no fundo da caneca. É a extraordinária criatividade do povo brasileiro, imagino eu.
Além disso, tivemos em nossa história exemplos como o do finado Nelsinho do Alto (nome mudado porque os parentes podem não gostar de vê-lo citado), que dedicou a vida, como ele próprio dizia, a comer de tudo um pouco, pelo menos uma vez. Há grandes discussões sobre o que ele efetivamente comeu em toda a sua trajetória, mas é certo que comeu diversos urubus. Não gostava muito, até porque o tempo de cozimento era muito longo, mas comia, creio que por uma questão de princípio. Não duvido que alguns seguidores seus ainda mantenham discretamente a tradição.
Enfim, nada de realmente novo nessa história toda, talvez apenas a reação de Zecamunista. Ao saber da novidade, ele de início não disse nada, mas depois apareceu com o anúncio de que ia entrar em contato com o indiano, a fim de disseminar sua técnica entre nossos conterrâneos e futuramente tornar a ilha um polo para quem não quiser mais comer, notadamente as mulheres preocupadas com suas silhuetas.
- Mas, Zeca, quer dizer que o pessoal aqui vai passar sem comer nada?
- É, mas sem comer ninguém nunca mais.
O Globo, 6/6/2010