A Conferência de Alexandria sobre a nova “civilização do medo”, juntando pensadores ocidentais e islâmicos, numa iniciativa inédita da Academia da Latinidade, terminou com a denúncia do terrorismo de Estado, a recrudescer no mundo hegemônico, exatamente no dia do assassinato do sucessor do xeique Yassim, responsável pela ação do grupo Hamas. E poucas horas depois, Sharon se encarregava de abrir caminho à caça livre a Arafat desertando de vez o diálogo, para armar os mísseis do poder público no extermínio seletivo dos antagonistas.
A mira eletrônica sem perdão assentar-se-ia sobre chefe de Estado reconhecido. Os desmentidos posteriores pertencem à retórica do gênero e não removem o delineio de uma prospectiva em que o terrorismo e o antiterrorismo transformam em fato consumado um mundo da desconfiança radical e seus diktats .
O debate de Alexandria que passa, agora, à etapa de Istambul, reuniu uma consciência crítica internacional frente ao universo das hegemonias e do confisco do evento pelo seu simulacro. Mune-se, de saída, de uma visão lucidamente pessimista, quanto a qualquer volta à construção da paz, por um possível pluralismo internacional. Ou de uma saudável competição, no comando do Ocidente, entre os Estados Unidos e a velha Europa, na busca de alternativas para a globalização, fora do poder, já quase cibernético, da superpotência remanescente.
Não pode ser outro o presságio desanimador sobre o futuro imediato, quando Tony Blair, no que o “Times” chama da mais surpreendente u-turn de sua carreira, quer atrasar sine die , por um plebiscito interno, a aprovação da Constituição européia, consolidadora do outro poder, no mundo global. E é todo um anel de novos satélites dos Estados Unidos que comprimem a matriz histórica do Continente, ainda continuada pelas tenazes americanas, do outro lado do antigo Muro. E, aí, no mundo muçulmano da antiga União Soviética, pelas novas alianças das Repúblicas eurasianas como o Azerbaijão e o Turcmenistão com a Turquia, ponta da presença de Washington na área. O terrorismo de Estado hoje, em Israel, só se poderia conceber, para os pensadores egípcios, como o endosso dos Estados Unidos à liquidação dos cenários pré-remodelização do Oriente Médio, onde ponteia, como excrescência sem remédio, a Palestina de Arafat.
O recentíssimo debate com Condolezza Rice no Congresso americano permitiu o rasgar-se esta dimensão estratégica larguíssima do governo Bush, e todo o efeito dominó que a permanência das forças americanas no Iraque acarretará aos governos da Síria e do Irã. No pouco impacto final - 19% - da guerra na opinião pública dos Estados Unidos, e crescendo o PIB a 4,2% neste quadrimestre, continuam empatados Bush e Kerry. A eventualidade de um segundo mandato republicano - cenário de catástrofe continuada - levou a Alexandria a debruçar-se, também, sobre a América Latina. Manterá Bush a trégua precaríssima com Chávez na Venezuela?
A inquirição sobre uma possível instabilidade na área voltou-se também para o Brasil, detentor do maior sucesso democrático da História contemporânea. Que efeito poderá ter uma queda súbita desta confiança inédita em Lula - admirada e invejada por todas as periferias - numa convivência pacífica, ainda, entre a concentração obscena de renda e a mudança, da nação hoje da esperança selvagem, e da mediação subliminal, tão-só, do presidente?
A Conferência de Alexandria reuniu-se sob a égide da “civilização do medo”. E a lucidez pertinaz do pessimismo é a arma, ainda, para sua superação. Se não estamos mais no mundo dos diálogos, ainda não entramos no da cibernética de futuro como ditam as hegemonias. Sobra-nos ainda o entrincheiramento, na boa barbárie do imaginário, seja por John Kerry, Lula ou Arafat, vivo em Gaza. Até quando?
O Globo (RJ) 4/5/2004