Não é que eu imagine que vocês estão tremendamente interessados, mas creio que devo explicar por que, de repente, vim parar em Berlim outra vez. Afinal, faço parte dos equipamentos urbanos do Leblon e tenho minhas obrigações de componente do mobiliário do famoso boteco Tio Sam todos os fins de semana. Ontem e hoje, por exemplo, imagino a perplexidade que tomou conta de todos os afetados pela minha ausência e, possivelmente, a revolta expressa por alguns, ao constatar que mais um irresponsável se junta ao vasto rol que já nos aflige imemorialmente.
Receio, contudo, que não posso explicar bem a razão por que estou aqui num apartamento enorme, levemente inclinado a criar um grave incidente diplomático porque um vizinho decidiu nos acordar de manhã, usando uma furadora diabólica, que devia ser considerada arma de destruição em massa e denunciada às Nações Unidas. Mas os alemães, de modo geral, são bem mais fortezinhos do que eu e prefiro não conhecer o sistema de saúde pública de Berlim, ainda mais na condição de paciente do setor de costelas quebradas, dentes arrebentados e pescoços torcidos. Além disso, é um episódio isolado e não tem nada a ver - pelo menos espero eu - com minha presença aqui.
Venho a Berlim com alguma regularidade, é tudo o que sei. A última vez foi durante a Copa passada e não constituiu um episódio dos mais edificantes para o nosso orgulho, tanto assim que preferi participar, juntamente com antigos vizinhos do bairro onde morei aqui 15 meses, do time de vôlei pelado, que aproveita os dias de sol para empilhar as roupas num canto e partir para a luta usando no máximo um boné. Jogar vôlei pelado é uma experiência singularíssima, com homens e mulheres pulando e, em conseqüência, sacudindo os balangandãs peculiares a cada sexo. Nossa aguerrida equipe se chamava Die Bestien von Halensee, que, ao contrário do que devem ter suposto os maldosos, não quer dizer "Os Bestas do Halensee", mas, claro, "As Feras do Halensee", e infundia terror nos adversários, até que, na semifinal contra um time de Kreuzberger, eles jogaram baixo e botaram duas coelhinhas da "Playboy" no time, o que arrasou nossa concentração.
A verdade é que, de vez em quando, recebo uma carta ou um e-mail me comunicando que devo comparecer a Berlim. Intrigado com o fato, cheguei a encomendar à minha amiga Ute Hermanns, brasilianista, tradutora, professora e intelectual de respeito, uma pesquisazinha para esclarecer a questão. Ela encarou com bravura a missão e me apresentou um trabalho preliminar, em seis pastas de 400 páginas cada, intitulado "Introdução preliminar às bases histórico-epistemológicas da vinda a Berlim de escritores baianos de óculos e bigode". Em mais oito anos, terminaria a parte histórica, mas eu, que ando com a vista fraca, preferi não perseverar nessa intrincada perquirição.
Esse interesse não me incomoda nem um pouco. Ao contrário do que pode pensar quem nunca veio aqui, Berlim é um cidadaço, ainda mais depois da reunificação da Alemanha. Passar uns dias aqui nunca dá tempo para ver nem uma fração do que é oferecido, em todas as áreas possíveis. Museus indescritíveis, galerias de arte deslumbrantes, concertos para todos os gostos e preferências, gente geralmente amável e pronta a ajudar visitantes desorientados, comida de tudo quanto é canto, até mesmo alemã, tráfego que eles acham congestionado mas pareceria aos paulistanos uma corrida de Fórmula 1, um zoológico combinado com aquário que não pode ser visitado apenas em um dia - enfim, um cidadaço mesmo, que quem pôde e não viu não sabe o que perdeu. (Não, não venho para receber um mensalão dos órgãos de turismo daqui, nem estou puxando o saco de meus anfitriões, é verdade mesmo.)
O mistério hoje, porém, não me parece tão longe de ser desvendado. Quem me convidou, como na ocasião em que morei aqui mais de um ano, foi novamente o DAAD, iniciais singelas de "Deutscher Akademischer Austauschdienst", ou seja, mais ou menos "Instituto Alemão de Intercâmbio Acadêmico". Lá me tratam esplendidamente e me fazem crer que sou um importante escritor latino-americano. É tudo muito bem armado e aparecem até caçadores de autógrafos nas edições alemãs de meus livros e fotografias com leitores. Extremamente lisonjeiro e não posso negar que faço a melhor cara de escritor latino-americano de que disponho. Mas, principalmente depois de minha performance na semana passada, suspeito de que o motivo real não me é revelado não só por uma questão de delicadeza como porque estragaria o experimento.
Na semana passada, participando de uma mesa-redonda sobre problemas europeus, comecei a ficar tonto com os representantes de minorias que apareceram. Ninguém pode acreditar, nem os que vou mencionar são os nomes reais das minorias, mas, depois de ouvir os valdemolinos reclamando de sua vizinhança com a comunidade hauferanesa da Baixa Esgorogóvia e do território de dois quilômetros quadrados que perderam para os visigomenos em 1457, acabei me queixando de que não estava entendendo como se pode andar três quarteirões na Europa Central e atravessar seis comunidades mutuamente hostis e com dezoito línguas diferentes. Senti o olhar dos meus amigos do DAAD. Viram os presentes o que é um importante escritor latino-americano? Não me magoei, é claro. Ninguém no Brasil poderia me substituir nesse papel. Só mesmo o presidente da Silva, mas este já pinta por aqui quase toda semana e ninguém acredita nem vendo e ouvindo. Modéstia à parte, sou insubstituível e em breve poderei proclamar que sou o maior visitante exótico da História da Bundesrepublik Deutschland. A não ser que da Silva venha fazer um improviso aqui na Alexanderplatz, mas aí já é covardia.
O Globo (RJ) 4/11/2007