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Minha tia Henriqueta

 

É uma felicidade poder homenagear minha tia poeta Henriqueta Lisboa por ocasião da publicação de sua Obra Completa, pela editora Peirópolis, com organização de Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda. São três volumes: Poesia; Poesia Traduzida; e Prosa. Eles fazem justiça à grandeza de sua obra literária. Homenageio Henriqueta pelo lado afetivo que nos uniu.

Em “Os Lisboa: Fragmentos de memória” falei de Henriqueta em companhia de seus irmãos, meus tios maternos1. Talvez não tenha realçado devidamente quão especial foi ela naquela família. Faço-o agora, nas palavras de seu irmão, José Carlos Lisboa, catedrático de língua espanhola da UFRJ e da UFMG2:

Éramos quatorze, originalmente. Depois, passamos a nove. Hoje, somos seis: três mulheres, reunidas em Belo Horizonte: Maria, Henriqueta, Alaíde; três homens, dispersos: São Paulo [Waldyr], Baependi [Oswaldo], Rio de Janeiro [José Carlos]. Os quatorze, nove ou seis fomos e somos os mesmos: atados por uma profunda solidariedade, irmanados verdadeiramente, com o sentido do amor e do respeito mútuos, herdados no leite, cultivados na doce convivência de casa. Nesta, em todo o tempo, as excelências desse amor e desse respeito gravitaram sempre em torno de Henriqueta. Não por ser a caçula, a mais frágil ou a mais dominadora. Apenas por ser quem era, e foi, e é: um ser de Poesia, diferente dos demais, na sua mansa firmeza, no seu poder criador, na vida ou nas artes – em todas as artes, letras, música, pintura. Ela era, para nosso orgulho e para nossa alegria, a singular figura marcada para a Eternidade, a Maga, a Mágica – sem qualquer ostentação: a Irmã perfeita, a Filha perfeita, a Amiga perfeita, era e é: o Poeta.

Não só para a família foi Henriqueta especial. Considerada pela crítica uma das grandes vozes da poesia brasileira, Antônio Cândido a comparou a Cecilia Meireles e Manoel Bandeira pela fluidez e caráter etéreo de seus versos3.

Em 1930 a Academia Brasileira de Letras (ABL) concedeu-lhe o Prêmio Olavo Bilac, “pelas primícias de meu trabalho” em suas próprias palavras – o livro de poemas Enternecimento. Voltou a ser homenageada pela Academia em 1964 e em 1974. Em 1984 recebeu a mais alta insígnia da Casa, o prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra. Em seu falecimento, em 1985, Raquel de Queiroz, a primeira mulher a entrar na ABL, afirmou: “Repito o que disse no dia de minha eleição: quem devia ter entrado aqui, primeiro que eu, era Henriqueta”4.

A Face Lívida, de 1945, e Flor da Morte, de 1947, estão entre seus mais belos livros de poemas. Muito se especulou sobre as razões do foco de Henriqueta no tema da morte nos anos 1940: o horror da 2ª. Guerra, os falecimentos de seus amigos João Alphonsus de Guimaraens em 1944 e Mário de Andrade em 1945, e de seu pai, João Lisboa, em 1947. Em “A Infância”, poema de Prisioneira da Noite de 1941, Henriqueta relembra a dor de seus seis anos com a morte de sua irmãzinha.

Especulo que esses eventos trágicos possam ter rebatido com o sentimento de sua própria fragilidade física, manifesta desde quando pequenina. Assim revela o depoimento pessoal “Vó Sinha e vô Lisboa”, que minha prima Maria Antônia Valladão Pires (filha de Abigail, irmã de Henriqueta), me enviou em 20125:

Sinhá [Maria Rita Vilhena Lisboa, mãe de Henriqueta] contava que Henriqueta teve coqueluche que durou um ano. Ela que já andava, parou de andar. Os alimentos lhe faziam mal. Sinhá percebeu que o organismo de Henriqueta não tolerava gordura. Passou a fazer uma dieta totalmente sem gordura. Assim ela conseguiu recuperar a Henriqueta. Ela contava que o primo Gabriel de Vilhena Valadão, que depois foi o sogro de Abigail, frequentava muito a sua casa, pois era amigo do Lisboa [João Lisboa, pai de Henriqueta]. Cada vez que ele chegava exclamava: Mas a Henriqueta ainda está viva! Essas palavras deixavam a Sinhá aborrecidíssima.

Paradoxalmente é dessa fragilidade física que Henriqueta parece retirar sua extraordinária força interior, que elabora poeticamente6:

Na morte, não. Na vida.

Está na vida o mistério.

Sua personalidade era forte, mas reclusa. Ao contrário de minha mãe, Maria de Jesus Lisboa Bacha, que adorou a experiência do Sion, Henriqueta a detestou, mas tanto assim que da madre superiora ganhou a desmerecida alcunha de la petite orgueilleuse.

Irritava-se quando a chamavam de poetisa, e me dizia algo assim: “só mesmo homens para quererem se apoderar de um substantivo terminado em ‘a’, como poeta, para relegar as mulheres poetas a um diminutivo poetisa”.

Foi amiga de Mario de Andrade por quem tinha enorme admiração. Em sua escrivaninha tinha uma foto dele num porta-retratos, protegida por uma renda bordada. Com esse mesmo recato, respeitou o desejo do autor paulista de que suas cartas para ela somente fossem publicadas 50 anos após sua morte. Essas cartas, trocadas entre 1939 e 1945, estão felizmente hoje disponíveis em edições primorosas. Nelas se destaca o paradoxo de duas personalidades tão distintas, com projetos literários muito diferentes, se influenciarem mutuamente e se abrirem a confidências e reflexões marcadamente pessoais, num nível de franqueza raras vezes visto, especialmente numa mineira recatada como minha tia7.

Porque expressava o encantamento que sentia, abri o discurso de posse na Academia Brasileira de Letras8 com trechos do poema “As Romarias” de Henriqueta sobre o Caraça9:

Aonde vai essa gente a subir a encosta,
essa gente que leva o semblante sombrio
e entrementes recobra o sorriso da infância?
Tudo isso é misterioso ao extremo.
E eu bem quisera, unido à montanha viva,
participar do segredo que se resguarda
no seio das pedras sob a coroa de nuvens.

Ao espanto poético de então se sucede agora a angústia da reclusão imposta pela pandemia. É a Henriqueta do poema “As Provações” que apelo para combater esse sentimento10:

O coração humano desconhece repouso.

Cada dia é mister renascer para a luta.

Sem trégua as picaretas golpeiam a rocha à

procura de linfa,

os olhos queimam de sol a sol decifrando enigmas.

Perde-se então aos poucos nas quebradas da serra

o uivo longínquo das alimárias.

O coração humano desconhece repouso.

O homem se inscreve cada dia na eternidade

Com uma nova presa debaixo dos pés.

 

1 Palestra na Academia Mineira de Letras. Belo Horizonte, 28 de junho de 2017. Disponível em: https://www.academia.org.br/artigos/os-lisboa-fragmentos-de-memoria.

2 Cf. J. C. Lisboa, Henriqueta. Suplemento Literário do Minas Gerais. Belo Horizonte, 21/07/1984, p. 8. Edição especial dedicada a Henriqueta Lisboa.

3 Cf. Antônio Cândido, O Menino Poeta. Suplemento Literário do Minas Gerais. Belo Horizonte, 28/02/1970, p. 8. Edição especial dedicada a Henriqueta Lisboa.

4 Cf. Revista da Academia Brasileira de Letras, ano 85, vol. 150, Sessão de 10 de outubro de 1985: “Henriqueta Lisboa”, págs. 290-292. As palavras de Raquel de Queiroz estão na página 292.

5 Abigail faleceu precocemente quando Maria Antônia ainda era criança. A partir de então, até seu casamento, Maria Antônia morou com meus avós e Henriqueta em Belo Horizonte.

6 Trecho do poema “O Mistério”, do livro Flor da Morte. Em: Henriqueta Lisboa – Poesia: Obra Completa volume 1 / Henriqueta Lisboa; organizado por Reinaldo Marques, Wander Melo Miranda. São Paulo: Peirópolis, 2020, págs. 268-269.

7Cf. Lauro Palú (org.), Querida Henriqueta: Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990; e Eneida Maria de Souza (org.), Correspondência Mario de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Edusp: Peirópolis, 2010.

9 Trecho do poema “Romaria”, no livro Montanha Viva. Em: Henriqueta Lisboa – Poesia: Obra Completa volume 1, cit., pág. 423.

10 Trecho do poema “As provações”, do livro Montanha Viva. Em Henriqueta Lisboa – Poesia: Obra Completa volume 1, cit., p. 431.

Portal da ABL, 16/12/2020