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Milagre dos milagres

 

Por mais que me esforce, lendo, ouvindo e vendo toda a indignação motivada pela corrupção reinante, não consigo esquecer a inutilidade dos castigos, por mais merecidos que tenham sido no passado ou no presente.


Deformação de gosto e ceticismo permanente diante de tudo, busco minhas referências lá atrás. Quanto mais atrás melhor, daí que sou realmente um atrasado e nada faço nem pretendo fazer para deixar de sê-lo - com perdão do preciosismo pronominal que lembra o finado Jânio Quadros.


Diz a Bíblia que, após a Criação, o Senhor verificou que tudo estava bom, tão bom que descansou no sétimo dia, satisfeito por ter feito o serviço, sobretudo o homem, à sua imagem e semelhança.


Não durou muito a satisfação do Criador. Pouco depois, percebeu que a humanidade não prestava mesmo e decidiu acabar com o que havia criado à sua imagem e semelhança. Abriu as cataratas do céu e fez chover 40 dias e 40 noites. Cometeu uma besteira: descobriu que havia um justo na face da Terra, salvou-o da enchente pior do que a de Nova Orleans, orientando-o a construir uma arca para nela colocar, além da família, os animais - que nada tinham a ver com a iniqüidade dos homens.


Deu no que deu. Em pouquíssimo tempo, tudo voltou a ser como antes. E o resultado aí está. Desconfio de que o Criador aprendeu a lição e não promoveu um novo dilúvio, deixando-o por conta das circunstâncias que periodicamente fazem chover em cima de todos nós. E honra seja feita à moral e aos bons costumes da sociedade como um todo: o que tem chovido por aí deveria ser bastante para nos corrigir.


O problema é que são muitos os Noés. E a arca, por maior que seja, é pequena para salvar todos os que se consideram justos. Há certa afobação entre os eleitos, um empurra-empurra que, volta e meia, joga um ex-justo na água. E, milagre dos milagres, todos acabam se salvando.




Folha de São Paulo (São Paulo) 21/09/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 21/09/2005