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Meu primeiro instante de terror

 

Nunca esqueço meu primeiro instante de terror na infância. Foi no Colégio Progresso, na aula de Daisi Albertini. Estará ela ainda viva em Rio Claro?

Surpreendentemente, o terror foi provocado por uma poesia. Uma poesia, quem diria? Daisi pediu a uma menina (a classe era mista) que se levantasse e declamasse. Havia dessas coisas. A garota começou trêmula, depois tranquilizou-se. Quem ficou trêmulo fui eu ao ouvir: “Deixa-me fonte! Dizia/ a flor, tonta de terror./ E a fonte, sonora e fria/ Cantava, levando a flor./ Deixa-me, deixa-me fonte/ Dizia a flor a chorar:/ Eu fui nascida no monte.../ Não me leves para o mar”. 

Então, a declamadora começou a chorar, não sei se de nervosismo, se de compaixão pela flor que estava sendo arrastada. Fiquei intranquilo, um nó na garganta inexplicável, uma vontade de chorar. Ser arrastado para um lugar ao qual você não quer ir me parecia tenebroso. O resto da aula dissolveu-se. Com os anos esqueci o poema, a sensação de mal-estar. Mas, repito sempre, acho que se tornou um mantra meu dizer que a vida traça pontos dispersos e depois une todos. Os que ela não uniu restam como pequenos enigmas.

Sessenta e três anos mais tarde, em 2007, eu escrevia meu discurso de posse na Academia Paulista de Letras e pesquisava sobre meus antecessores. A praxe manda que falemos sobre eles. A isso se chama imortalidade. Ser lembrado de tempos em tempos depois da morte. O segundo ocupante de minha cadeira, a 37, foi Vicente de Carvalho, advogado santista, considerado dos maiores líricos brasileiros por Afrânio Coutinho e o renovador com brio da poética realista, por Alfredo Bosi. Até então, confesso, Vicente de Carvalho era o nome de um distrito do Guarujá, cidade do litoral paulista, vizinha a Santos. Comecei a ler as poesias dele, primeiro por dever, depois empolgado, porque descobri que o poeta fazia parte de minha vida, desde os 8 anos, e eu não sabia. Porque ali estava à minha frente o poema A Flor e a Fonte, que tanto me apavorara. À medida que eu lia, me via na classe de Daisi, me revia no pátio do Progresso, atirando pedras nas mangueiras, o que era proibido, ouvindo a campainha de Inez Picoli, sinalizando para que voltássemos à classe. O poeta uniu infância, maturidade, carreira. Tudo ligado por uma flor aterrorizada.

Isso me voltou à mente meses atrás, quando José Renato Nalini me propôs escrever a biografia de Vicente de Carvalho (1866-1924), para uma coleção coordenada pela Academia Paulista de Letras e destinada a traçar o perfil de todos, mas todos, os acadêmicos que passaram por aquela casa. É um projeto em parceria com a Imprensa Oficial que tem produzido biscoitos finos em matéria de livros. Esta coleção, pela variedade de nomes, poderá ser uma pequena história da Cultura, do Direito, da Literatura, das Ciências, do Ensino, da Música. Preciosidade em tempos de nuvens negras.

Acaba de chegar às minhas mãos o volume Vicente de Carvalho, Poeta, Abolicionista, Pescador. Pocket confortável de manipular, ou seja pegar, mexer, ler. Desenhado por Cecilia Sharlach, edição de Andressa Veronesi. Vicente era casado com Ermelinda, irmã de Julio Mesquita, fundador de A Província de S. Paulo, hoje O Estado de S. Paulo. A vida inteira foi um poeta inquieto, homem curioso, advogado, jornalista, deputado estadual, secretário do Interior, fazendeiro, juiz de direito, abolicionista, defensor do meio ambiente, criador de escolas para mulheres, batalhou pela alfabetização e pela reforma do que se chamava a Instrução Pública, teve a ideia de fundar uma universidade em São Paulo, e atuou bravamente contra a febre amarela em Santos. Corajoso, chegou a se unir a grupos abolicionistas que resgatavam escravos das fazendas, conduzindo-os aos quilombos de Santos, que ficaram célebres. Pertenceu a duas Academias, a Paulista e a Brasileira de Letras. Seu lema seria complicado hoje. Ele dizia que é preciso “viver às claras”. Ou seja, de modo transparente.

Chamado o poeta do mar, Vicente sempre foi pescador fanático. Ele, que tinha também uma empresa de navegação no Vale do Ribeira, costumava pescar para o almoço de seus convidados a bordo. Certa vez, anzóis perfuraram sua mão esquerda, as bolhas infeccionaram e todo o braço foi tomado. Tiveram de amputar. Manteve a serenidade e aos que vinham consolá-lo ele dizia: “Camões não foi caolho? Pois sou caolho de um braço”. Sua estátua foi erguida na Praia do Boqueirão em Santos. Curiosamente de costas para o mar, o que provocou protestos.

O Estado de S. Paulo, 15/01/2021