Achava-me em Londres, em 1994, quando Agostinho da Silva morreu. Assim que soube da notícia, escrevi sobre ele e sua obra para um jornal do Rio. Agora, que estamos comemorando o centenário de seu nascimento, vale a pena que se chame de novo a atenção para a importância de sua obra. De uma estirpe foi ele, a estirpe romano-visigótico-galego-luso-brasileira em que necessariamente nos inserimos. De estirpe é todo o gênio que, pés no chão, tem a visão do caminho.
Filósofo, pensador, humanista, na linha de Camões, Antonio Vieira e Fernando Pessoa, pensou Agostinho da Silva portuguesmente, pensou ecumenicamente. Ideólogo por excelência, influenciou-nos a todos, mesmo sem o sabermos. É que a ideologia de Agostinho da Silva já era nossa, nossa vinha sendo há séculos, pelo menos desde Henrique o Navegante, provavelmente desde D. Afonso Henriques.
Em livro editado no Brasil, quando aqui viveu exilado - "Reflexão à margem da Literatura Portuguesa" - dizia Agostinho: "Soldado é Camões, não pensador." Para ele, o soldado é poeta, ou o poeta é soldado, no sentido de que em tudo vêem ambos "um significado de futuro". Porque todo ideólogo acha que um dia chegará "a hora da história".
Aí, utopicamente, acrescenta Agostinho da Silva que, nas crises e lutas de um povo, "é a história do mundo que se está fazendo, ao mesmo tempo em que a história do indivíduo e uma e outra se encaminham para o mesmo ideal de santidade, para o mesmo rumo de fraternidade, para o mesmo céu de uma terra sobrenaturalizada.
A amplitude da obra de Agostinho da Silva, a rija originalidade de seu pensamento, podem levar-nos a reflexões várias sobre aspectos insuspeitados de nosso tempo. Fiz certa vez uma conferência na Inglaterra sobre sugestões hauridas em Agostinho da Silva. Como a de que o protestantismo é nacionalista e capitalista, enquanto que o catolicismo se apresenta, inclusive nominalmente, como universal e, ao mostrar-se realmente cristão, acaba sendo comunitário e, na práxis política, socialista.
Nem por outro motivo conseguiu o comunismo criar raízes precisamente na Rússia, onde o espírito religioso assumira dramaticamente, dostoievskianamente, aspectos cristãos. O que impulsionava, antes de tudo, o pensamento de Agostinho era a liberdade, sem a qual não há saída. Num ensaio sobre Péricles (no qual trata seu personagem com a segunda pessoa do singular: "vês", "fazes", "pensas"), defende a liberdade, terminando com estas palavras: "Tu e outros como tu puseram acima de tudo o amor da inteligência e da liberdade".
Em vários de seus livros lutou para nos convencer que a história dos povos deve ser compreendida "como objeto de inteligência e como projeto de ação".
De que maneira entender um país no seu futuro? Entender, especificamente o Brasil, que era também terra de Agostinho da Silva, no seu futuro? Haverá um núcleo de grandeza num povo, como o nosso, que, embora resultante de várias misturas, é basicamente português? Poderemos erigir o pensamento de Agostinho da Silva - e quem foi mais pensador em nossa terra e em nossa língua do que ele? - em partícipe de uma caminhada rumo à "hora da história"?
Longe da ditadura portuguesa de então, passou Agostinho da Silva cerca de 20 anos no Brasil. Foi professor numa série de universidades, tendo influído em mudanças na da Bahia, onde organizou seminários e promoveu debates sobre os assuntos do momento. Lembro-me de quando eu morava em Lagos, na Nigéria, como adido cultural e fazia conferências na Universidade local, na de Ifé e no Husserl College na cidade de Warri na região Itsekiri, no delta do Níger, e vim à Bahia para seminário afro-brasileiro dirigido por Agostinho. Salvador fervilhava então de teses sobre o complexo cultural
do Brasil, com o reitor Edgar Santos e Agostinho dirigindo um movimento de conscientização de uma cultura.
Mais tarde Agostinho se fixaria em Brasília onde suas aulas ficaram famosas, com lições permanentes de brasilidade e, principalmente, da necessidade de que tomemos plena consciência deste País que é nosso e só depende e precisa de nós para ser um grande país.
A Academia Brasileira de Letras, sensível à importância da obra de Agostinho da Silva no Brasil, promoveu um ato de homenagem à memória do mestre, em mesa-redonda de que participaram Alberto da Costa e Silva, Salim Miguel, Amândio Silva, Sebastião Nery e José Almino de Alencar.
Para comemorar condignamente seu centenário, faz-se mister, antes de tudo, que se leia Agostinho da Silva - em universidades, por brasileiros e portugueses de todos os tipos, de modo a que a força de seu pensamento seja posta a serviço de uma caminhada necessária.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 29/08/2006