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À mestra com carinho

 

Ainda bem que não só de malfeitos e coisas ruins vive a atualidade. Por exemplo, estamos em pleno festival do saber e da inteligência. As Letras comemoram o centenário da professora Cleonice Berardinelli, que acontece no ano que vem, mas cujas homenagens são tantas que já começaram. Esta semana, foi a vez de a Academia Brasileira de Letras sediar o seminário “Há 100 anos Orpheu canta para Cleonice”, organizado pela cátedra Jorge de Sena, da UFRJ, que teve as sessões transmitidas pela internet e acompanhadas por ela de casa. Doutora em Letras e livre-docente em literatura portuguesa, autora de edições críticas dos “Sonetos” de Camões, de dramaturgos do século XVI, ela é consagrada nos meios acadêmicos daqui e de Portugal por seus trabalhos, em especial os dedicados a Fernando Pessoa, sobre quem escreveu uma tese pioneira em 1958. Venerada por seus discípulos, era conhecida na minha turma do curso de Letras Neolatinas, da antiga Faculdade Nacional de Filosofia, como “a divina Cleo”, uma expressão com a qual concordavam seus colegas de outras cátedras, como Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima, Thiers Martins Moreira, Celso Cunha, José Carlos Lisboa, Hélcio Martins.

Ela era a nossa musa, paixão platônica e inconfessável, aliás, até hoje. A voz cristalina e segura de quem na juventude interpretara no palco peças do quinhentista Gil Vicente, seu charme e a capacidade de seduzir a plateia eram a demonstração de como a inteligência podia ser alegre, e a erudição, agradável. Graças à bela e querida mestra, descobri Pessoa e passei a entender “Os Lusíadas” — eu e centenas de discípulos de várias gerações. Só na ABL, ela tem seis ex-alunos, dos quais dois, Domício Proença Filho e Antonio Carlos Secchin, ambos professores e poetas, apresentaram na última quarta-feira pequenos ensaios sobre a obra da homenageada.

Domicio lembrou que, depois de formado, os vários momentos e faculdades em que conviveram juntos solidificaram a admiração e o carinho profundos pela mestra, ou melhor, pela “Mestríssima”, como a chama. Secchin, por sua vez, declarou-se “perpétuo aluno” e na dedicatória de seu livro “50 poemas escolhidos pelo autor”, escreveu: “Haverá, talvez, poesia/ em algo que aqui se disse?/ Melhor indagar à mestra/ em verso e prosa: Cleonice”.

Cleo, a “atriz”, pode ser vista no documentário “O vento lá fora”, em que ela e Maria Bethania interpretam Fernando Pessoa. Uma delícia.

Na véspera de lançar seu livro, o queridíssimo Miele me ligou convidando para sua noite de autógrafos. Quando disse que não podia ir por problemas de saúde, ele, sempre generoso, recomendou: “Te cuida, cara, queremos você bem”. O mesmo eu deveria ter dito pra ele. Com sua morte, perdemos a graça.

O Globo, 17/10/2015