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Memória do Carnaval

 

Sendo uma história do carnaval carioca, o que Ricardo Cravo Albin fez neste belo volume, em que o passado é visto sob as mais significativas cores, foi também na verdade um levantamento da memória do nosso carnaval. Atente-se para a diferença entre ''história'' e ''memória''. A primeira narra simplesmente. A segunda pega na história por todos os seus lados e vai buscar, lá no fundo mesmo de seus elementos, a força da alegria de viver que a rotina da repetição procura abafar.


O carnaval que está nas páginas de Tons e sons do Rio de Janeiro de São Sebastião é a memória de toda uma cidade envolvida em sua alegria, de uma cidade capaz de bater palmas para a beleza de um pôr-de-sol, de uma cidade em que tons e sons vêm de dentro de um povo que vive cercado por uma natureza que ele, antes de admirar, compreende. E por ter em si a presença de representantes de várias linhas raciais que descobriram a força vibrátil deste conjunto de terra e mar em que vivemos.


O amálgama de ritmos, batuques e melodias aqui surgido, já depois do aparecimento do povo da Europa, da gente africana e do encontro deles com o habitante da terra, provocou essa mistura que levou séculos para atingir os tons e sons do Rio de Janeiro, em particular, e do Brasil, em geral.


Já na introdução que escreveu para seu livro, Ricardo Cravo Albin pega a memória e ilumina as cenas que mostra, dá-lhes o vigor que, a partir do lundu e da modinha, nossa música passou a ter. O lado ''memória'' da análise de Ricardo Cravo Albin aparece também no estudo que o autor faz do abrasileiramento que nosso povo passou a fazer, pegando cantos e danças de origem africana, melodias de amor e de saudade do português e a intimidade indígena com os sons rudes que se acham mais próximos da natureza.


A velha tendência de haver, numa comunidade, um dia - ou mais de um - em que tudo seja permitido, está na raiz da idéia de um carnaval. É um dia em que os ''de-baixo'' podem zombar dos ''de-cima'', xingá-los, dançar em frente deles, num completo abandono do respeito que têm normalmente o dever de demonstrar.


Tudo precisava, porém, subordinar-se a músicas, a mudanças de roupas, a danças e a movimentos exagerados do corpo, isto é, era preciso que se abandonasse, nesse período, todo sinal de normalidade. Sob certos aspectos, poderia parecer que o Cristianismo abominasse, no começo, qualquer idéia de suspensão da normalidade religiosa, mas a idéia de festa já vinha embutida na Páscoa e na alegria da Ressurreição. Com o tempo, o carnaval passou a integrar naturalmente o calendário das gentes.


Atente-se para o fato de que o livro de Ricardo Cravo Albin se fixa de preferência no carnaval carioca. Foi nele que a memória do povo se concentrou para criar seus cânticos, seus ciclos de festas, aproveitando sempre o que houvesse no momento para inventar uma novidade e aceitar uma tradição que, naturalmente, pode deixar de existir quando surge mudança no mundo material. Assim, o corso, que era das coisas mais apreciadas no carnaval até os anos 30, desapareceu quando o automóvel de capota móvel deixou de existir por volta de 1935.


A reprodução das letras de inúmeras músicas de carnaval, feita por Ricardo Cravo Albin, serve como verdadeira antologia dos versos compostos para a festa. E esta antologia revela o talento específico do brasileiro não só no fazer música, mas no ligá-la a palavras, com versos como ''tu pisavas nos astros distraída'', de Orestes Barbosa, poeta como poucos (quando o editor Ozon publicou uma recolta de versos de Orestes Barbosa, pediu-me um prefácio para o mesmo, o que fiz com a maior alegria).


Elogiemos os sons, mas também os tons. Sob esse aspecto, o livro de Ricardo Cravo Albin é de um extraordinário bom gosto. As cores de seu livro são em tudo adequadas a seu conteúdo. Lançamento do Instituto Cultural Cravo Albin com o apoio de Elpaso e do Sesc-RJ.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 08/03/2006

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 08/03/2006