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A memória de Cony

 

Meu conhecimento e consequente amizade com Carlos Heitor Cony caminhavam para os 50 anos. Foi em 1968 que nos conhecemos, na bucólica residência de Betinha Lins do Rego, filha do escritor José Lins do Rego (1901-1957), que era proprietária de uma linda casa em Teresópolis, na serra fluminense.

Cony tinha saído do "Correio da Manhã" e perguntei se gostaria de conhecer Adolpho Bloch (1908-1995). Com a resposta afirmativa, fiz as apresentações. Criou-se uma amizade para toda a vida.

Cony foi uma peça importante na engrenagem que levou a revista "Manchete" à liderança nacional. Não só ele escrevia textos admiráveis, como também livros que fizeram muito sucesso, como os que se referiram à saga de JK no Planalto Central. Além, naturalmente, dos que faziam parte da sua obra literária, como o insubstituível "Quase Memória", escrito em 1995.

Com o seu talento polifacetado, acabou sendo peça-chave de uma série de publicações das empresas Bloch, como as revistas "Fatos & Fotos" e "Ele Ela", além naturalmente da clássica "Manchete".

No ano 2000, tive o privilégio de ser escolhido orador para a recepção de Carlos Heitor Cony na Academia Brasileira de Letras. Fiz seu elogio, com prazer imenso, e com ele convivi nesses 18 anos, acompanhando seu sucesso também nesta Folha e na rede CBN, onde ele se apresentava diariamente. Sempre bem sucedido, curtindo os filhos Regina, Verônica e André.

Cético e irônico, pintor nas horas vagas, Cony escreveu 65 livros, entre os quais "O Ventre; "Pessach, A Travessia; "Pilatos" e o "Quase Memória", este uma mescla de ficção e autobiografia, que marcou a sua volta ao livro, depois de 22 anos sem publicar qualquer romance. Seu estilo foi marcado pela preocupação com a condição humana.

Com dificuldades de dicção, foi matriculado pelos pais no seminário São José, no Rio. No fim da vida, confessou, numa reportagem, que jamais deveria ter abandonado o seminário. Teria sido um bom padre?

Aliás, devo lembrar um encontro que tivemos em Roma, no ano 2000, com o cardeal e acadêmico dom Lucas Moreira Neves (1925-2002). Depois de uma visita ao Vaticano, fomos almoçar num restaurante em Roma. O cardeal pediu para falar a sós com Cony. Era convite para que ele voltasse à Igreja. Naquele momento, a cantada não funcionou.

Cony teve uma grande paixão pela cachorrinha Mila, presente de Adolpho Bloch que lhe fazia companhia enquanto escrevia suas crônicas. Dizia: "Amá-la foi minha resposta, e também acredito que ela entendeu isso. Formamos, ela e eu, uma dupla dinâmica contra as ciladas que se armam e contra aqueles que não aceitam os que se amam."

Costumava confessar que o sobrenome Cony seria uma corruptela de Cohen, de origem judaica. Mas admiração mesmo tinha pelos escritores cariocas Machado de Assis (1839-1908), Lima Barreto (1881-1922) e Marques Rebelo (1907-1973).

Hoje, com muita tristeza, podemos acrescentar a essa lista selecionada o nome honrado e competente de Carlos Heitor Cony. Já temos saudade dele.

Folha de S. Paulo, 12/01/2018