Ela não entendia nada de arte, não gostava de arte, e sobretudo detestava museus. Mas estavam fazendo turismo em Nova York e, como disse o marido -ele sim, um homem culto, familiarizado com a obra dos grandes artistas- ir a Nova York e não visitar o famoso Museu Metropolitan era um verdadeiro absurdo. Coisa da qual ela acabou se dando conta; a última coisa que queria era voltar para o Brasil e ouvir de uma de suas metidas e arrogantes amigas um comentário do tipo: "Mas como, você foi a Nova York e não visitou o Metropolitan?"
Aceitou, pois, a sugestão do esposo, impondo algumas condições. A visita seria curta (e seguida de uma excursão ao Macy's e a um fino restaurante); e ele a pouparia de ver as obras mais complicadas, aquelas que a pessoa nunca sabe se se trata de arte ou de brincadeira de mau gosto.
Foram, pois. Como ela previa, achou aquilo uma chateação; a todo instante consultava o relógio. Mas aguentou razoavelmente até o momento em que o marido disse: "Vamos dar uma olhada nas obras do Picasso".
Aquilo era demais. Porque, embora inculta, ela sabia que Picasso era sinônimo de quadros bizarros, um olho aqui, um nariz ali, nada a ver com nada. Ele, porém, prometeu que aquilo encerrava a jornada artística, e ela, ainda que de má vontade, o seguiu. Detiveram-se diante de uma tela intitulada "O Ator".
E então, o inesperado. Olhando o homem jovem que ali estava representado, e que parecia mirá-la fixamente, ela se sentiu como que transportada para um mundo estranho, um mundo onde nunca estivera antes. De repente, compreendia a arte. Não: de repente a arte penetrava-a, se apossava dela. Uma verdadeira revelação, uma epifania; a emoção foi tão forte que a fez cambalear. Ela caiu sobre a tela.
O marido e outras pessoas que estavam ali socorreram-na. Recuperou-se, e então viu que, ao cair, produzira um rasgão na tela. Um rasgão que tornara o quadro completamente diferente, surpreendente, mesmo. Ou seja: ela dera a Picasso, ainda que involuntariamente, uma colaboração, que o mestre poderia (e deveria) considerar preciosa, um novo horizonte em seu trabalho.
Foi o que disse ao esposo: "Pode ser que o Picasso até me agradeça pelo que fiz. Pode ser até que me convide para colaborar com ele." Ele sorriu: "Difícil, minha querida. O Picasso já morreu."
Com o que ela calou-se. Muito irritada: tal como pensava, os artistas são uns enganadores. Não se pode confiar neles: morrem quando menos se espera, sem ao menos agradecer pela colaboração que seria decisiva em sua obra.
Folha de S. Paulo, 1/2/2010